Acabou.

O poeta se findou.

As idéias originais
as lições profundas
- se esgotaram

...enfim

Acabou.

O poeta se calou.

Já foi dito
tudo de bonito
já se consumou seu propósito.

Agora outra coisa respira.

Outra coisa
sopra palavras
destras ou canhestras

depois do ator
depois do mestre e do aprendiz
depois de amante e amado
depois do severo e do humilde

outra coisa ainda
respira além das carapaças

- a alma se ergue no raiar do dia...

e o poeta se findou.

Estrela da Manhã

Ainda não sei onde chego
mas sei já aonde estou.

Ainda não sei bem do meu destino
mas mesmo assim estou indo estou indo.

Pra começar vou perdoar
deixar chorar os cortes da navalha do desprezo.

Pra seguir vou sorrir
que é pra desanuviar dar ares de graça ao tema.

A vida é o plim
das varinhas de condão

e o beijo além de ser gostoso
é nutritivo!

O dom da poesia me dá todas as chaves
brinco agora de pinçar fechaduras
paciência à pesca de cadeados

com iscas de suntuosas loucuras bailarinas
iscas vivas suculentas de paixão
pescando fechaduras e cadeados

abrindo portas e portões
baús sarcófagos e porões
caem as correntes da mente!

O dom da doçura
me dá voz forte e inteligível

o som da candura
do tom dinâmico que cura

A voz amável que afaga
o ar quente que me anima

-ah! é este ar que quente me anima
é teu cangote teu regaço
são teus perfumes delicados

ah são estas orelhinhas estas sobrancelhas
é esta certeza alerta que vem cautelosa
passos de lã que trazem consigo a tempestade

minha certeza voraz e fugaz
minhas promessas silenciosas
nos solavancos da jornada

ah estes abraços cadentes
quero a alegria do hálito quente
respirar bem de pertinho o ar doce que lhe escapa...

Ainda não sei onde chego
mas já sei aonde estou

estou bem na pátria do sossego
deixa a menina cantar até que ela vire estrela.

batedeiras

enquanto isso
eu vou acreditando

enquanto isso
eu vou sonhando com o melhor

insira humildade aqui

desculpa qualquer coisa
perdão

não tem porque pedir desculpas
mas às vezes não precisa de porquê
simplesmente precisa ser

Gongada

Vejo-os
cheios de sonhos

vejo-os
cheios de esperança

Vejo a vida desabrochar
a cascata e o vermelho

vejo o dia se espraiar
o estio de uma eternidade

Vejo-os a correr a voar
cheios de sonhos

vejo-os a assoviar gargalhar
cheios de esperança

Stefinição

Tudo que se diga
que se escreva
todo quadro e toda poesia

aquilo que se diz
é sempre só metade da mensagem.

A outra metade
é segredo.

Toda estória que se conte
que se descreva
toda crônica e todo teorema

aquilo que a linguagem alcança
é sempre nada mais nada menos que metade da mensagem.

A outra metade
é o segredo.

------

Dos segredos
é mesmo impossível falar

revelá-los é extingui-los
em sua característica de secreto.

A perfeição
é mesmo impossível pintar

a perfeição que cabe
dentro e fora de nós...

Tudo que enfim cantamos
é simplesmente a melhor tentativa

de ilustrar de uma maneira compreensível
o segredo.

Da armadilha que monto para mim mesmo

Homens grandes eu vi -
Eu vi grandes homens.

Homem grande quis ser -
Eu quis ser um grande homem.

Enquanto era criança eterna
falava do que eram os grandes homens
sonhava ser o maior entre os maiores,

ai sonho de tirania ignorante
dediquei-te os anos de ouro de minha juventude

- serei ainda apenas uma homenagem
inconsolável sobre teu sepulcro?

Ai meu sonho eterno e infantil
de ser o melhor entre os melhores

de ser o imenso entre os gigantes
sonho de tomar pelo colarinho o genérico homem
de sacudir pelas nucas a humanidade e comandá-la...

Seria talvez uma ignorância imperdoável
ou quem sabe o mais aspirado atino?

Quem sabe
se aquele pós-adolescente
projetinho de xamã terapolitano

se aquele molecóide pseudo-cientista
pseudo-poeta pseudo-tudo
andarilho fumetinha metido a macunaímico

se aquele bunda mole
zé mané
descabelado desgrenhado

se aquele cabeça chata
com cara de cearence
cabaço presunçoso desbocado

se aquele esporro de artista
engasgo de sensibilidade inventada
se aquele foco de emoção profunda -

quem sabe
se aquilo sim era ideal a se atingir?

Quem sabe
se escapou-me
entre os dedos
pela poesia
o derradeiro poder
o derradeiro fardo,

quem sabe
se aquele mongezinho de férias
não era mesmo o melhor projeto de rei do mundo...

Quem sabe se a batuta não era merecida
se o rastapé a ferro e fogo já não era herdado...

...

Já hoje
vivo melhor

já sem ânsia de tirania
evito ser comandante do mundo
mestre elemental de todo universo -

percebo que é mais propositado
ouvir do que gritar
quando já não se tem mais o que falar.

À luz da vela

todo mundo quer
o creme

todo mundo quer
a paz na terra

uma estrada mais colorida
a escolha que tremeluz

as relações sem vício
uma fonte de energia alternativa

todo mundo quer
um céu mais azul

todo mundo quer
do cremoso -

não tenha vergonha
não não se envergonhe

não tenha vergonha
de falar sobre o paraíso

não não se envergonhe
por cantar sobre o paraíso

não tenha vergonha
por sonhar o amor no mundo

não não se envergonhe
por desabrochar a emoção sincera

não tenha vergonha
de falar sobre o céu
não tenha vergonha de cantar sobre o céu -

não tenha medo de tuas lágrimas
de tua melancolia que amadurece com as décadas

continua fiel aos pássaros em teu jardim
seja muitos seja tanto seja mil pais e mães

não tenha medo de se ver superado
superado quem sabe por si mesmo por quem quer que seja

não tenha medo de passar o bastão
de encontrar o herdeiro fazer sociedade com o irmão

das melhores respostas:
o silêncio

seja a caridade a virtude maior
faça-se o sonho da terra

seja o sonho do homem
o sonho da terra

seja a paz da humanidade
o arco-íris da sensibilidade

seja o sonho do homem
o sonho da vida

não tenha vergonha
de inventar o seu céu na terra
não não se envergonhe de cantar sobre o paraíso...

Do estado daquilo que não para nunca de rodar.

Eu vou fazer
bonitinho.

Eu vou fazer
do jeito que a vovó pediu.

Eu vou fazer
sim vou
bem do meu jeitinho.

Bem assim
desse jeito meio assim sem jeito

eu vou fazer cantar essa chibata
chegou sua hora de espartanizar
se é que chega um dia hora tua sobre esse mundo!

Chegou a hora de ser mármore
mármore rosa açucarado sambando tentáculos

chegou a hora de ser supremo cabresto de luz
é hora de tocar o berimbau pra Deus poder dançar

chegou a hora de ser a firmeza masterizada
os pulmões infinitos na maratona musical eterna
chegou a hora de agradecer e não pensar em nada mais!

Eu vou fazer.

Vou.

Bonito que só!

Vou fazer
do jeitinho que minha vovó pediu.

O passado todo vai me amar
por pegá-lo pela mão na pista

tudo que passou vai voar
porque puxei-lhe pela cordinha
e o peão não para nunca mais de rodar!

Porque o peão não para
nunca de rodar

o sonho da presença
não para nunca de rodar

as múltiplas dimensões
todos os multiversos frugais
a seiva as tosses o choque elétrico do tesão
eles não param nunca de rodar

-mas vai de nós conquistá-los:
conquistar o estado daquilo que não para nunca de rodar.

massaterapias

o dom de apaixonar
de fazer fascinar

a magia dos abraços
dos resfolegos

o poder
da coceguinha

é o que mais queremos
daí tantas guerras

queremos as coceguinhas
de luz

os arrepios
vivos matutos

queremos o pássaro
de asas abertas a voar

mas ai... ai... pranto doído
ai... lição profunda...

percebi o dom
habilidade do fascínio

e o que vem junto
a responsabilidade

tenho coragem pra amar
perdoo-me as imposturas

que a dor cresça
organizada me fortaleça

sou o pássaro
a voar de coração aberto

do amor que tarda mas não falha

tanto ela faz
ao tão pouco fazer

lá está ela
ela corre e escorre pela cena

tanto ela faz
e quase parece nada fazer

ela sim salabim
sabe sorrir sabe dançar
na batida do reggae ela falou

cantou de amor incondicional
risadeira alto astral
doce entrega de sua voz

tanto ela faz
ao sorrir ali no regato

tanto ela faz bem
por estar ali pelo amor

extra-via

eu vou deixar
vou deixar deus falar por mim

ele já sou eu
tudo que vejo ele vê
tudo que sinto é ele

vou deixar ele falar
pela minha voz que é dele
e vou só me divertir ouvindo

vou deixar ele falar
falar tudo que sinto

falar de tudo que é
conectar as peças
completar alguma tarefa pelo poema

vou deixar ele rir
gritar e chorar
vou fazer todo escarcéu

eu vou é me divertir
ouvindo o que ele fala por mim

todo dia é uma estrada
com placas desgastadas
é uma estrada por onde os ventos correm

todo dia é uma escola
e pra ser mesmo feliz
tem que se acostumar com o dez

tem que ser ator
beber do mistério insolúvel
fazê-lo o enigma revelado do deus de si

cada sabor
cada nutriente

cada som
cada amor
cada dúvida

ofereço ao deus em mim
que vê tudo que vejo
e sente tudo que sou

que o deus em mim desperte
saboreie
aprecie até a última gota do néctar

ofereço a deus
em mim
este ar que me alinha

este olhar
que se desnuda

ofereço ao deus em mim
minha vergonha minha hesitação

minhas dúvidas espúrias
ao deus em mim o perdão

por tudo que é pequeno demais
por tudo que é ingratidão

por tudo que fiz e refiz
esqueçam-me todos os passados
estou zerando meu sistema

deus me formata
agora o disco rígido está branco

contem-se as estórias belas
que emocionam e fazem chorar

contem-se os contos da concórdia
as vitórias dos heróis que saborearam o deus de si

deus está entre as linhas
como o amor que faz do fio solitário um agasalho

ofereço minha diversão
minha mansa criancice
é esta a dádiva que semeio

que o deus em mim
que deus
através de mim
desfrute

desfrute disto tudo
que ninguém consegue enxergar
desfrute a guerra silenciosa
o erro sem significado

deus abençoe
tudo que não posso tocar
mas que em certa altura
quem sabe
por um tropeço meu
se faça iluminar

Do que todos diziam ser impossível...

Você pode levar sua comida
e comê-la toda sozinho,
e se garantir,

mas se você repartir
e passar o seu pra frente,
irá experimentar um pouco de cada coisa
que também foi colocada na roda.

Repartir
é muito mais divertido!

Quando você entra no mato
só dá pra comer arroz ou frutas secas
você só pode carregar uma única coisa

mas se entrar na roda
abre mão do seu
mas irá provar o de todos
que estão dividindo juntos ali.

E quando todos os solitários
tiverem ficado sem reservas
e morrido de fome,

aqueles que se uniram,
estarão repartindo

até o último gole de água
com amor...

e sobreviverão...

Portais Postais

dias de sol
tardes de chuva
flores coloridas
ventos sábios
crianças
crianças a correr
a brincar
a imaginar
a amar suas mães
famílias especiais
pureza e carinho
ternura e firmeza
cânticos do coração
da alma da terra
da paz das águas
dança do sonho eterno

O dia em que o menino voltou...

Não é saci
nem curupira

não tem mula sem cabeça
nem boitatá -

a lenda do meu mato adentro
é vivo mito e se chama Tainá.

Floricultura

estou em mim agora
mais em mim agora

isto quer dizer
que estou menos em mim agora
menos em mim agora

porque quanto mais eu sou
menos eu estou

porque quanto mais em mim estou
menos em mim estou
porque eu em mim sou muito mais que simplesmente eu

estou mais eu agora
mais eu porque mais meus amigos

estou mais tranquilo agora
mais tranquilo porque desencabrestado
porque vagamundo pelas bicas brisas das minas gerais

o sul me chama

o sul chama todos os pássaros em mim
o sul do verão eterno me chama

meu coração está migrando
pro trópico da minha alegria
pro estio de minha arte itinerante

agora sou mais eu
porque sou mais além de mim

agora estou mais em mim
mais em mim porque pra além de mim
meus braços são os ventos abraçando a terra inteira

Deus é a gente sem os problemas...

se eu confessasse
minha insânia

se eu colocasse
em palavreado simplório
minha ânsia de loucura

loucura que se resolve
loucura atinada longe da multidão

se eu confessasse
meu cânhamo
meu torpor de bailarino

a vida me é sonho
de todos tipos sonhos a realizar

vendo com olhos de dragão
sorvendo juventude
bailo com as mãos

se eu confessasse
minha incompetência

cadê que roubaram minha consequência
vou fingindo assim que sei da alegria
fazendo sorrir o novo de cada dia

meu desleixo mesmo pra com o essencial
por vezes minha cilada contra mim mesmo

abocanha-me pela canela
a arapuca armadilha cósmica
agora arrasto seus guilhões

correntes que cedo aprendem a voar
a bola de ferro vira em balão de hélio

minha loucura meu compromisso
derradeiro conceito atenuante
minha missão é brasa e samba no pé

que querem de mim
a morte
a vida
a noite
o sol do grande meio dia

que tanto averiguam
todo tempo

por sob todas as peles
todos os véus e cortinas
que tanto esnifam fungam inferem

que tanto querem de mim
a noite
o sol
a vida
e a morte

que há de mim que se beba
que a noite e o sol
descansadamente bebam

que há de mim que se prove
que a própria vida
e a própria morte provem de doce

que tanto mexem remexem
escapulam de lá pracolá

essas luzes
na batalha

como vagalumes
o fio batendo
fazem lume

essas luzes
da guerra no breu

essas faíscas
relâmpagos

pocantes
silenciantes

elas iluminam
o caminho do guerreiro

e da poesia de faísca
da prosa dos relâmpagos
fará ele sua última foice

Descaminho

Descobri
um mapa
do tesouro.

Indicações e instruções sagazes
o mapa da mina ditava severa rota
em cujo fim se via a alegria do grande xis!

Pelo xis
vendi tudo
minha casa e meus pertences.

Agora invisto tudo na terra prometida
botando fé que lá certamente estará minha glória
gastei minha fortuna pra poder me dedicar a escavar.

Descobri
um mapa
do tesouro

repleto de jóias raras
enterrado sob os segredos do mundo
o baú continha as maiores riquezas imagináveis.

Alcancei
a vitória
do xis

abandonei tudo que conquistara
pelo sonho que o divino me revelara,
quis acreditar e me veio a recompensa -

veio grande
veio imensa
pagou mil vezes a crença!

PANESPIRITUAL

vieram me deixando
deixando atrasar

deixa me deixa
ser irresponsável

só um pouquinho
estou precisando ser feliz

vieram que vieram me deixando
passar cantar fui abrindo caminho a troar

vieram que vieram
me beijando abraçando me amando

e eu fui me dando
fui dando e fui tomando

uma hora já não era mais eu
era mosaico criatura viva de retalhos

era um acolchoado gostoso
de retalhos recortados das brisas dos ventos

era mosaico colorido de pedrinhas e conchinhas
sideradas amontoadas bonitinhas fazendo poesia

já não era mais eu era uma egrégora
de abraços carinhos ternuras sinceras

era um coletivo de mantras
suingando com as nuvens altas

dançando com as flores abertas
bebendo com as raízes nas escuridões

eu vim foi pra animar os foliões
se alegrar pois já deu de reclamar

já deu de reclamar de apontar
já deu de passar a batata quente pra frente

já deu desse vacilo todo de achar mais importante o ruim
que o amor é o melhor e ele não faz preocupar não deixa exasperar

vieram que vieram me puxando pro samba
me empurrando afobado pelas salsas mais calientes

vieram que vieram me educando das artes malemolentes
afinando minhas varas me sorrindo sem economia de dentes

a loba já me lambeu
a cigarra quis me homenagear

a leoa foi caçar pra mim
se encafifou trouxe foi bagas silvestres

Dextrezas

Ei garota de cabelos soltos na tempestade
deixa o vento falar alto levantando tuas ondas

ei garota morena de ouro
deixa o vento arrastar cachos e madeixas

desfaçam-se os nós da coroa
abram-se as asas da autonomia!

Ei garota de cabelos esvoaçantes
faz a tempestade rugir carinhosa

faz a inocência das cadências
permite-me o interesse
a persistência...
mas sem insistência!

passo liso
mas não passo sem amigos...

passo anônimo
mas não passo sem significado...

Ai grega fulô
sarará rubra magenta e doirada-

pelos cílios do poema
não os arranque!

Permite-me ser teu anfitrião
interino leito de teu repouso

permite-me lavar-te
os pés
a alma...

lavar das discórdias das remissas
lavar das desatenções dos atrasos

deixa lavar-te os pés
a alma
com as lágrimas de minha esperança...

funesta, ai funesta
obscura e eternamente obscura esperança!

deixa-me lavar das descomposturas as curvas e desvios
deixa-me dar luz à paz que sintoniza o infinito ai tão banal e dispensável infinito...

deixa-me lavar dos afogamentos fumegantes da bile toda tensão das tripas
deixa-me encher de água de ar de terra de sonho deixa-me lavar-te a lembrança...

cândidas psicológicas
tuíms extremos das respirações do fogo

o destino
sutil
calmo e livre
o destino
vem chegando
já vem vem chegando...

O Destino
já vem bem chegando
de mansinho
abrace-o
abrace seu destino...

Garota de cabelos soltos na poeira
aos ventos garoas granizos trovoadas

deixa o vento levantar soprar
as soltas tranças sob o sol...

Tabuada

Coragem
é saber mudar de opinião.

Coragem
é não ter vergonha de se divertir.

Plenitude
é guardar pra poder repartir.

Plenitude
é não deixar nem o inimigo na mão.

Inteligência
é não desenterrar as sementes
cultivar o ócio artista onisciente.

Inteligência
é cuidar da saliva e dos dentes
domar a fera do instinto paciente.

Força
é pra derrubar velhas crenças
fazer valer propósito que convença.

Força
é pra condensar as experiências
reger as paixões com prudência.

Harmonia
é cantar em gratidão aos passarinhos
fazê-los, curiosos por ouvir,
saírem de seus ninhos.

Harmonia
é sonhar com os oásis dos desertos
fazê-los, curiosos por florir,
revelar seus verdes secretos.

Amor
é viver cada instante como uma vida
é desejar prazer e boas feridas

Amor
é cuidar do mundo como se fosse seu
é educar os pequenos como se fossem seus.

Alegria
é o tom sagrado das lágrimas de cura
sabor soprado
pelas damas da noite.

Alegria
é o encanto atento da vontade pura
coração batendo
pelas bençãos da fonte.

Finóculos

A cada mês
todos os átomos do teu corpo
são reciclados.

As células levam meses
algumas anos
para trocarem totalmente

mas dentro da estrutura das células
todos os átomos são trocados a cada mês,
átomos de fora, do exterior, vão empurrando

vai, sai o que não é mais nós
pra fora átomos que estão em nós!

- Temos um novo corpo atômico por mês...

e você ainda acha
que não pode mudar sua vida
e as coisas à sua volta!

Veradicto

É só uma questão
de usar a inteligência.

O poeta popular diria
use a inteligência que Deus te deu!

É tudo só uma questão
de a gente usar a inteligência que tem...

Minusculite

deixar manteiga na faca
é pecado
porque fica ruim de lavar
mas também pelo desperdício...

gosto de gente que limpa a manteiga da faca
mesmo que seja no dedo pra depois lamber...

deixar pentelho no sabão
é pecado
porque fica feio de pegar
mas também pelo desperdício
tanto ele derrete antes de se poder usar...

gosto de gente que come na mesa
e não deixa as migalhas caírem no chão
mas sim no prato

porque tem-se que limpá-las depois
mais também pelo desperdício
que de grão em grão a galinha saca o barato...

Libris Focus

Deus acuda
quem cedo caduca!

Dispense da labuta
quem cedo madruga!
- ao invés de bater cartão,
nascer do sol no ribeirão

ao invés do misto frio de rua,
brincar de bom dia com a lua

ao invés das pulgas no escritório,
abraçar a fé e o sonho mais ilusório...

Chlorellas
e goji berries

ginsengs tribulus
e ginkgos bilobas

vitaminas matinais surreais
figos secos e tâmaras astrais

-a vida passa!
...não avisa nada...
a vida passa
-vira passa!

Rubras Jubas

Construa
e eles virão:

Ella
estará lá
todas elas
deusas musas

e todos eles
amigos faunos
eles estarão


no meu grande sonho
- O Grande Sonho
de minha arte


naturalmente
hei de encontrar

as mais belas
ninfas sararás

os mais varões
arquitetos,
Onde senão?

Onde senão em meu grande sonho
eu havia de encontrar o amor mais lindo
que me inspire?...

o sonho da arte
e sua vitória

sua mensagem
destilada
pelas ruas

e pelos corações
pura humilde
sincera tranquila
e voraz...

Cinco não é dois com dois
não se deixa o amor pra depois!

Não se deixa o sonho pra depois
nem também seu preço

altíssimo
preço astral

das ações
necessárias

da transmissão da sabedoria
mais carinhosa
mais caridosa...

Compaixão para consigo mesmo
perdão a si por si mesmo...

Deus é a linguagem
que traduz o real
absoluto inequívoco

em senso
sentidos
e emoções...

É a magia
que faz possível
a experiência -

e que,
enfim!
dela goza

como goza a criança
em seu reino...

Despejos

É o seguinte
dezenove não é vinte.

Esquece o resto
que o que resta não presta.

Esquece a falta
que o que falta não tá na pauta.

E vá tomar banho!

Descabrestado

É meia noite no meu
                       sentimento
E à meia noite e um tenho
                      outra chance:

Outra chance de viver
de despertar sem alarmes na
                              hora certa
Outra chance de aprender
de cavalgar sem rédeas na emoção
                                       alerta.

Outra chance de amar
de juntar tesouros pra poder
                                   dar
aguar as sementes fazê-las
                                brotar...

Outra chance de olhar
de refazer em brincadeira o
                          destino do mundo
absorver que até a pior desgraça
                          tem valor profundo.

É meia noite em minha alma
E num minuto ela faz cantar
canta até o sol raiar.

E ao meio dia
meu assunto
da outra banda do momento
arde a luz que amaina todo
                               tormento...

De dia o astro
caminha sobre mim,
mas agora
à meia noite e um
eu que ando sobre ele -
sou humano serafim...

Tenho ainda outra chance
outra chance de lutar
de cair ou de perder
outra chance pra tentar
pra fluir e pra vencer.

Se eu pudesse
só tocava
e dançava
o dia inteiro...

Dar meu máximo:
É o mínimo...

...tem mais não...

Lamento De Madrugada

Melhor que o socavo da tapira na serrapilheira
Na cachoeira quentinha do igarapé máquina chuveiro
Deito pelo ralo o elfo de orelhas pontudas de outrora...

No breu colorido do descampado cósmico
Buzinas esdrúxulas interrompiam o sono dos cegos cantando:

"Se eu não durmo ninguém dorme!
Este veículo está sendo roubado!"

Ode Sudorética

Sou aquele que afirma
Sou O Grande Afirmador.

Sou penugem que respira
sou emoção em destilação

sou aquele que afirma
a alegria por sobre a dor

e eu canto do...
do fedor...

Sem perdões
salvem os bons palavrões!

Sou o sujo
o roto maltrapilho!

Sou sim
o louco!

Que esbarra em você
sem querer ou perceber

o toque leve
de odor canhestro

de mãos sujas
do carvão e da lenha

unhas decrépitas
de lenhador

mestre do fogareiro
inato instinto incendiário!

Sou o sujo
de cabelos duros

barba desfeita
madrugada cumulada nos sovacos...

- Mas desde quando
desde quando
unhas aparadas

desde quando
cabelos engomados
sonhos castrados

e esta ira patética
esta raiva que ataca
estas pequenas vitórias

desde quando
esta ridículas vinganças
minúsculas satisfações

desde quando
desde quando elas formam um homem?
- Desde quando formam o melhor dos homens?

...não que a higiene não tenha sua suma importância...

mas desde quando essa frescura
e esta hipocrisia todas
esta insegurança sádica

esta marombazinha de academia
insatisfeita com suas monogamias
doente das cabeças e dos pés

desde quando
esta limpeza da superfície
significou a pureza do interior?

Sou aquele que afirma
Sou O Grande Afirmador.

Sujo por fora
mas puro por dentro

- Sou sujo mesmo!

Mas minha lama
minha defumação

meus carrapatos e bernes
meus cortes tropeços ralações

ah tudo isto vai-se num banho
tudo isto lavo bem num bom banho...

Agora,
tua hipocrisia

teu medo contido
tua dança zumbizóide

tua vontadezinha de ser melhor que eu
melhor que o poeta na fila da lanchonete

só porque você está limpinho
é uma tristeza, é patético, meu amigo...

Entenda
que a sujeira

é tão sagrada
quanto a pureza

-sujo e limpo
dependem um do outro
haveria limpo sem sujo?-

Ai minha sujeira
minha poeira

minha poeira insana
reluzente de mil prismas

maravilhosos globais
momentos inespaciais

mais que mais que especiais
é vida de um amor em cada cais...

Trombonagem

Avenida Roberto Marinho
rebatizada de fininho

mas que grande porcaria!
por aqui não se vê uma padaria!

não passa um ônibus nem lotação
se estiver a pé, vai é ficar na mão...

Roberto Marinho
teve do poder o gostinho

mas a avenida em teu nome
ai que desavento, ninguém a socorre!

vê-se varais clandestinos entre postes
passeia-se pelos piores dos odores

mil barracos, pois não querem seus lotes
marginais e traficantes são seus senhores...

Ah avenida roberto marinho!
que agora soletro pequenininho!

você é mesmo uma porcaria
daqui não se avista uma só padaria!

se estiver a pé, está na mão
aqui não passa nem ônibus nem lotação...

Reis Leais

O melhor amor
é aquele que não quero

aquele de que não preciso
que não quero, mas quero...

O melhor amor
não posso querer

porque é ele que se faz querido
é a escolha mais forte
que me escolhe...

O melhor amor
não vem quando o busco

não me atende quando chamo
não me satisfaz só porque exclamo

O melhor amor
soma, não completa

ele bate de frente
e mais que complementa...

Ele vai chegar
quando eu não esperar

quando não esperar
por mais nada

quando tiver conquistado
as terras de minha alegria

os templos de minha leveza
as asas de minha plenitude...

Quando eu já não desejar
quando eu souber seguir

reto, direto sem freios
a senda de minha vitória

ah ele virá!
virá inesperado
fogoso

dedicado
desfazendo nós ignóbeis

virá empurrando
contra as paredes da catarse
destemido

mas tímido!
virá de berro de latido!

Meu melhor amor
é força da natureza

que valsa com os corações
criando terceira entidade entre os amantes...

...sopro de verdade recôndita
a flama queimará por conta própria
até que só restem as saudades
de todo melhor que vivemos juntos...

Tataranas

A primeira
estava porta adentro
do quarto ali de cima...

não assustou,
colocou-a pra fora
delicado.

Será que ela voltava?
Ou era outra?
Segunda?

Recolheu-a
calmo
levou à grama...

Depois
o espanto
quanto a vê

trepando-lhe a camiseta!
tinha-lhe já escalado meio tronco!
aonde queria chegar a taturaninha espinhenta!

Encafifou-se
quase mortificado
bateu-a da roupa à soleira da cozinha...

E no dia seguinte
entre istos e aquilos
nota um cílio estranho no chão

pedacinho de coisa pisada
e sangue verde esmagado
ai, lá estava o bichinho prensado

pela chinela
que de meias no frio
jamais sentiriam o veneno do confronto...

...depois...
...depois ele ficou sabendo...
...ficou sabendo que...

pequeninas tataranas verdes
têm de voltar sempre pro jardim
que são ainda só bebês engatinhando

mas não passa um piscar
de olhos celestes -
e serão borboletas!

Dos Viranoites

Ele tem que gritar
tem que espernear

o poeta
tem que sentir

até o fundo
saber

da ponta da língua
o que é o mundo.

Mas se ao fim
depois de sentir

depois de pensar
e entender

se o poeta
não tiver amado

se não tiver
loucamente amado

se tiver ficado só
sem bons nós atados

se não tiver
mais que chorado o não -

urrado
jubiloso o sim!

Ah...

ele não terá então
completado seu serviço...

Lunas Cordobenses

Sou mistério
amistoso

esfinge
com samba no pé
e sorriso no coração.

Sou império
audacioso

profeta
com pito no beiço
e baquetas nas mãos.

Sou paciência
e o ardor da iniciativa

sou também prudência
mas sem papas na língua
nem recalques de naftalina.

Sou insanidade
e a lucidez da ação

sou também probidade
mas sem medo dos tabus
nem freios na roda dentada.

Sou esperança
desgraçada

sou o inimigo mortal do mundo
que se arrasta por valores imundos

sou a voz que alardeia o descuido
a revolta amorosa contra o absurdo...

Sou criança
psiconauta

viajando por um túnel
entre o aqui e o agora

sou a sagrada amnésia
que revê as vestes e máscaras

sou o silêncio prolixo
dos dedos que acariciam ternamente...

-sou mesmo um quase demente
plantando enfim minha semente-


(eu acredito na juventude
acredito na juventude que canta
que se mete a trovejar
eu acredito na juventude
acredito na juventude que se levanta
que quer poder improvisar)


Sou mistério
mas mistério amistoso
sou teu amigo de gozo

sou esfinge
mas esfinge que samba
sou aquele amante bamba!

Pródigos

Esta cidade
de pedra
ela continua

pulsando
com sangue de petróleo

e veias de aço
e capilares de vidro espelhado

cuspindo e babando
tabaco e cerveja

continua arrotando
a juventude desmamada

defecando a miséria
dos contrastes imaginários...

Continua
dançando
todos os ritmos

do axé
ao boogiewoogie

do pagode
à ópera malandra!

Continua
gozando

pelos poros
do abandono social

respirando
truculentamente

os acasos
e suas geniais exceções...

Da Trocentésima Parte

A arte
é o poder
de transfiguração das realidades.

O poder
de transformar
a imagem que criamos de alguma coisa.

Tornar o sofrimento
em aprendizado,
é arte.

Ver o erro
como necessidade,

interpretar o desafio
como estímulo,
tudo isso é arte.

É um método
de simplificação
inerente à inteligência orgânica

serve para resumir
para abraçar, abarcar
as excitações sensoriais
e assim conquistá-las.

A arte
é o poder
de transfigurar a realidade,

moldá-la
afim de criar
novos experimentos do ser vivente

afim de dar
a toda religião
e toda ciência
um propósito divino...

e se o corpo,
os olhos
os ouvidos

são projeções internas
de nossa mente
e vemos apenas aquilo que ela constrói,
(ao contrário da realidade absoluta em si)

então o próprio organismo
a própria matéria da vida
já é essencialmente artística!

Por isso tudo que vemos
e sentimos
é arte:

transfiguração
daquilo que há
em algo que se pode abraçar
com pequenos braços humanos...

Palo Santo

Será possível
corrigir
qualquer coisa na existência?...

não é apenas
uma mesquinhez,
uma abreviatura
pra uma vingança desnecessária?...

Para além
de todos os nomes

deuses
conceitos
valores

para além de tudo

o nuclear
da existência

terá ela em algum momento
se desarranjado
pra que tenha que se rearranjar?...

ou quando foi
que ela teve lei
pra que em certo momento possa ter anarquia?

Gostoso
mesmo
é a gente conseguir acreditar...

acreditar
nos sonhos
e construções
de nossos espíritos,

independente de que
na realidade absoluta
da onipercepção

não haja nada disso
senão como sonhos
alegres
dos quais jamais queremos despertar...

se a vida
é isto

que seja então
de novo e de novo

eternamente!

Ph Zero

Eles não gostam
não gostam, filho

eles não gostam
que se atrase,
que se expresse

não gostam, filho
que se atrase
pois se apresse!

Eles não gostam
não gostam, filho

quando não preenches relatórios
quando evitas os cronogramas
quando deixa-os a esperar...

Eles odeiam, filho
e vão te odiar

se te atrasares
se falhares o compromisso.

Bem pois bem
tiram de ti o lucro

dois terços do quinhão
tiram de ti o líquido

pois como não te odiarão
quando te fazes atrasado
e perdes o serviço

como não te odiarão
quando faltas
e roubas-lhe
aquilo que te iam roubar!

Patolices

Pode um homem
ser o elo dos elos?

O link
dos links?

Se ele souber
respirar como condor

se souber conduzir
com amor...

Se ele souber
entregar-se ao temor

conquistar o sabor
destilar o saber

se souber assentir
em si o prazer

se puder digerir
o reciclar das marés

o adeus aos avós
os crimes e partos...

Pode um homem
ser o elo dos elos?

O eixo
dos eixos?

Só se o for
assaz pleno, por si -

só se o fizer
pérfido e perfeito

só se o fizer
de chulipa no trejeito,

e especialmente
só se o fizer por si mesmo.

...mas o mesquinho não se apercebe
que segue em frente com seus netos...

e que não escapará,
como tudo que possui corpo
não escapou

de ter sido mais
muito mais
que jamais poderia conceber...

Do Mote Gracioso

Há um magnetismo
natural
entre tudo que é belo

uma atração
fatal
entre olhares que brilham,

Há um magnetismo natural
entre as cútis que cantam

entre a boca faminta
e as tetas cheias de leite

entre o punho cerrado
e as paredes da miséria,

uma atração fatal
entre o peixe e o anzol

entre o breu da fechadura
e a luz libertina da chave

entre o coração valente
e os enigmas do horizonte...

Há um magnetismo
mágico
entre tudo que é sonho

uma atração
astral
entre mãos que dançam.

Como entre abelha e flor
entre musa atada e raptor

Como entre faca e queijo
entre sopro criador e beijo

Como entre a lua e o mar
que pelas ondas a tenta tocar...

Como entre música e atenção
entre objeto infinito e denominação

Como entre chuva e chão
entre pés ardentes e inspiração

Como entre a morte e a vida
que pelo destino não nos deixam saída...

Há um magnetismo natural
uma atração fatal
entre tudo que há de sublime.

Zás

Tudo
Tudo são momentos.

Nada mais que isso.

Efêmeros.

Zás!
Eletrizantes!

Conectantes

Esfrunzirantes!

Transpectantes
Profundamente simples...

Excomensurantes
Desvirgilantes

Transmutantes.

Ah que bom é ser aquele
cuja paz é contagiante.

Quero ver quem é
que vai me impedir

de fazer tudo do meu jeito
assassinar o tédio pelo amor!

Quem é que vai
me negar o suplício

a confissão
o desgosto amargo

quem é que vai
me empurrar longe

saber beber-me
poder sentir o radiante!

Zás!

Ad Eternum

Quando um dia
te perguntarem,
sobre tua vida:

Farias tudo de novo?

...se farias
tudo de novo...?

-fique sabendo,
é uma pergunta retórica-

Farás!
Farás tudo de novo!
Uma e outra e infinitas vezes!

Nó D'Goela

Queria fazer
da minha vida
uma homenagem aos amigos

uma homenagem
aos antigos amigos
aos novos e aos que nunca verei...

Queria fazer
dos meus dias
uma consagração

um agradecimento
profundo, sério, leve
uma prece com asas de borboleta!

Queria fazer
dos meus dias
grãos de areia

na ampulheta maior
do oceano de coragem
que o sol agita em sua luz...

Ah mas por este sorriso
quanto dei!

quanto destruí
quanto sofri!

Ah por este sorriso
úmido e misterioso

rapace
impiedoso

ah por este sorriso
quantos oceanos
a nado atravessei

quantos desertos
de frio e melancolia
em meu seio carreguei...

Ai solidão
do filósofo
do excepcional

te glozo -
glozemo-nos,
sou teu como és minha!

Tempestades sonoras
rebentam em torno de mim

não há permissão ao silêncio,
preciso do tempo amplo em que se fala...

Quisera fazer
dos meus sonhos
a fábrica de novas realidades

tirar amarula da pedra
encobertar refugiados políticos
dar horizonte de fascínio ao que aflora...

Quisera fazer
das minhas lágrimas
-das que rolaram e das que não-

da dor que não acode
do êxtase extremo que me sorve,
fazer de tudo minha unha e minha carne...

Quisera fazer
deste sorriso
ah este sorriso patético

uma escola
mundana
transmutante,

ah este sorriso
quisera fazer dele
o valor de minha existência!

Estiquepuxas

Não deu pra ir na festa,
melhor foi cuidar da minha coluna.

Já não sou mais
aquele adolescente indestrutível

já não sou mais
aquele jovem de joelhos de aço

que pulava com tudo pro alto
e socava potente o um do compasso

que sambava com todas as juntas
e caía no chão intacto quando quisesse...

Já não sou mais
aquele jovem invulnerável

já não sou mais
aquele bicho que crescia pra todos os lados

que ficava em pé sobre a moleira
que andava plantando bananeira

que dava nas urticárias coceira
que flutuava sobre toda asneira...

Quem sabe um dia
quem sabe

quem sabe um dia
eu volte a sê-lo...

Quem sabe
quem sabe um dia

eu possa de novo
dançar

dançar como se fosse
um adolescente indestrutível

de joelhos de aço
e pulmões sem fim

dançar como se fosse
aquele jovem inteiriço

de olhos livres de tersol
e ciático irretocável de poder...

Já não sou mais aquele,
mas

quem sabe,
quem sabe um dia...

Interincidências

Todo dia
é dia de continuar tentando.

Todo dia
é dia de acordar sonhando.

Todo dia
é dia de seguir lutando.

Todo dia
é dia de ir cantando.

Das Normas Salutares

Quem respeita
pode nem sempre ser respeitado,
mas só quem respeita
recebe um dia respeito.

Quem dá
pode nem sempre receber,
mas só quem dá
recebe um dia algo.

Quem ajuda
pode nem sempre ser ajudado,
mas só quem ajuda
pode um dia ser resgatado.

Quem ama
pode nem sempre ser amado,
mas só quem ama
recebe um dia algum amor.

Quem agradece
pode nem sempre ser reconhecido,
mas só quem agradece
pode um dia ser retribuído.

Quem fala
pode nem sempre ser ouvido,
mas só quem fala
- do coração -
pode um dia ser bem recebido.

Extafa

Por que será?

Será porquê
que toda vez
que piso na Bahia,
eu quero começar
a escrever um livro novo?

Será que é
por esse ar,
tão doce e fragrante?,
esse ar
que entra macio
e cheio de cor,

aos poucos
dando novos ímpetos
e redesenhando
pelos prazeres
da pele
a face sensível
do espírito...

esse ar,
frágil
sob a ensolação
que nos dias de sorte
se amaina
sob os nuvenzais
algodoados de cura,

esse ar
que é só o primeiro parágrafo
dum livro que quem sabe um dia exista.

Ou será
pela arte?

Mambembe,
embrenhosa
de titãs
meio caboclos
meio apolíneos,

de amizades
de dedos grossos
e mãos calejadas,
de amizades de bioconstruções
e meditações ativas divertidas das melhores lisergias...

Será por esta escola viva de arte
que a voz rouca da caneta de repente
vocifera, clamando por virgem caderno?

O papel reciclado
é agora ventre desnumerado
da mesma herança de arte sambante
que ama
- mais que tudo - atar e desatar
todas as qualidades dos nós escoteiros e velejadores,

surfe na veia
que nos salva
das resenhas prolixas
que criticam a literatura hang loose

já que jamais souberam
fazer da areia
farofa de sorvete,

segurar
todas as pontas
pra prevenir abstinências.

As serras
seguem
serrando,

marretas
a marrer,

braços
a torcer

e as linhas
a acabar

- e pro livro
não ficar às moscas,
fica assim,
um livro de uma página só.

Castoreios

Muitos momentos...

tantos
e tão ferozes
em sua transitoriedade.

Muitos momentos...

tantos e tão sutis
em sua velocidade imaginária
tão abundantes de beleza nua.

Há tanto a se dizer,
tanto a ser dito...

Tenho de dizê-lo de vez,
quero que disso algo fique...

Muitos momentos...

tantos
e é preciso adicionar-lhes
tempero entrementes...

Impersona

Gentilmente, ela se move
A melodia canta e dança em mim...

Areias destemporais, correm
na ampulheta rubra do meu coração...

Eu sou nós
eu sempre fomos nós...

Eu somos todas populações em mim
em constante administração
divisão de tarefas
diplomacias inter órgãos
meu itamaraty molecular.

Cada eu
é no fundo um nós,
mas não se dão conta, egocêntricos

e enfim o nós de tantos eus
é um mesmo nós de células e organelas.

Não me agradeça, portanto
pelo bem que faço
por tudo que dou ou deixo de roubar:

Agradeça a mitocôndria
Agradeça tia jurema
os lactobacilos vivos
as divinas bactérias carnívoras.

Eu não sou eu,
Eu somos nós

Egrégora de entidades minúsculas
coletivo de instintos autônomos.

Gentilmente, ela se move
Nossa melodia canta e dança
Sobre o altar do bem estar.

Iscado

detalhes relacionados
pequenos detalhes -

que nos compõem!

estronchos
minimais
detalhes sabores
detalhes saberes

sorvei! - oh! sorvei das mamas!

linhas de mãos
tracejam nossas vidas

pincelamos
com tintas flúor

na madrugada
Solertes
tragamos
e consagramos.

A Magia
são todas as cores
o além dos mitos e signos.

Além da caridade infértil
mil milhões de esferas além
nutrido das mais reais geléias...

Música
em espírito,

minha alma canta
a lira dos dias e noites

minha alegria dança
desabrocha a flor da presença,

roga com todos os anjos
por que possa prosperar,
em semente e fruto

por que possa prosperar
outra vez em flor...

por que possa prosperar...

Colírio D'Alma

Se você quer se emocionar
já fique logo bem sabendo:

Amor é bom
e é pra vida.

Não é só papo de maluco
que veste roupas coloridas:

O amor é grande
é de quem quiser chegar.

É bom sentir o amor chegar
de qualquer jeito que vier:

seja num pôr do sol lilás
ou num canto de pássaro na janela,

Amor é bom
e é pra vida.

Se você quer se emocionar
fique bem logo já sabendo,

que se quiser me acompanhar
é paz, amor e pé na estrada.

Paz
Amor e
Pé na estrada!...

São Nevrálio

Quando você alcança
um estágio elevado
de prazer de viver

seu coração
passar a criar implosões
perfeitas
que geram gravidade própria.

O coração
não funciona como uma válvula

mas sim como um acorde
de notas musicais

tocadas
com mais ou menos harmonia...

(pela sincronização ideal das contrações
de suas sete camadas de músculo espiralado)

- Cabe um infinito
dentro do teu peito.

Cabe mais de um infinito
dentro do teu peito
quando ele canta...

Arquifuleiro

Se me é claro
que no fundo tudo é ilusão

como construção dos sentidos
e é bem claro esse erro fundamental

que permeia todo conhecimento
então, em nome da vida

para que o conhecimento seja pela vida
aprendemos que é necessário errar...

Entrar na ilusão
porque não se pode eliminar a ilusão
sem eliminar a vida junto...

a ilusão é
O instrumento
musical
da vida,

para que ela
através do conhecimento
se torne cada vez mais e mais elevada,
para que alcance o glorioso de seu ouro.

Embatumes

Eu nunca erro:
só descubro como não se faz.

Preciosos equívocos
ensinam como os maiores mestres.

Eu nunca me perco:
só descubro por onde não se vai.

Distintas contrariedades
educam como os melhores pais.

O erro
A falta
O pecado
A desgraça:

não passam jamais
de interpretações pessimistas...

Inπnito

Rápido, não se atrase:
Firme, não se apresse.

Vai, colhe os frutos:
já estão maduras
as vinhas de meu conhecimento.

Época de colheita,
pisotear o sumo
saborear fiel cada trecho do sabor.

Sacras ventanias, suspiram
lições da mais destra compaixão.

Sábias implosões, imploram
pela sina que se nutre de êxtase.

Regalados deleites, impõem-se:
o propósito biológico é a luz do gozo.

Graciosas verdades, proclamam:
o prazer é maestro da sinfonia viva.

Não se entende um livro
contando letras,
como não se julga um homem
por seu ato mais extremo.

Leia-se o inexpresso
implícito na riqueza do contexto,
dance-se à lua cheia
que faz a alma mergulhar no ser.

Carpe Urbem!

A cidade respira
mil musas enfastiadas
mil ventres férteis como o roxo.

A cidade transmuta
a agonia da maioria
pelo eterno da exceção.

A cidade enferruja
os pregos e martelos, a bigorna
de toda filosofia de ses e poréns.

Carpe Diem
Carpe Noctem
Carpe Vitæ
Fugere Timore...

Só viverá
além da vida
quem a tiver vivido
como se fosse a única:

a mecânica de suas alegrias
incrustada no código essencial
perdurará como voz que canta

no coração do sonho
a canção altissonante
da fusão de toda herança.

Supranatural

Meu amor
é de tempestade
e de arco-íris.

Meu amor
é de se fazer ouvir
e de saber ouvir.

Meu amor
que não é meu,

é saga partilhada
por mil amizades,

é colheita coletiva
dos campos da perfeição.

A beleza
é para poucos:

é dos melhores,
a beleza só se mostra

aos vencedores
aos de instintos corajosos,

a beleza
é dos orgulhosos

que nem de sua vaidade
sentem mais vergonha.

Do joio
tiro o trigo
tranquilamente,

planto propósito
para colher paciência -
há tempo ainda para a liberdade...

Queixada

Está que é só o osso,
falam em todo canto

é osso,
A Vida é osso!

Mas pra cão
e cachorro de rijos dentes

osso
vale ouro...

Ouça só
o osso vale ouro,

enterre vários
e garanta leal o inverno!

A vida
é só o osso:

duro de roer
mas doce como mel...

Suor Frio

Não me importa
o seu passado:

só quero nosso amor,
que ele dure!

Não me importam
seus quereres:

só quero nossa missão,
que ela floresça!

Não dou a mínima
pras tuas faltas:

quero mais a satisfação,
que ela fortaleça!

Não estou nem aí
pro como você me trata:

tudo a que mais aspiro,
é que você me compreenda!

-

Ah, quando você me beija!...
quando sente saudades de mim...

Ah, quando segura minha mão,
e me faz perceber...

Eu me quedo
suando frio.

Eu me levo
pelo suor frio...

Corpo De Baile

Ainda é tempo
de perguntas e respostas:

são intermináveis
suas sublimes razões...

Resplandecente
e inteiramente liberta -
Ela me carrega.

Para te fazer entender
escreveria teu nome
na areia à beira-mar.

Uma harmonia me traga
clímax digno de toda espera.

Pensei que encontraria
um dia, aquilo que escondi:

mas busquei tarde demais
pois que a voz de dentro
era um amor

que ambicionava
-mais que tudo-
sussurrar...

Para te fazer sentir
escrevo teu nome na areia
à beira-mar da Vida.

Digitígrados

A vida
não é o que ela é:

ela é
o que fazemos dela.

Quero a prudência
que é a coragem astuta
que conhece seus riscos.

Quero a loucura
que é a prudência foragida
que corre quando se tem de correr.

A vida que vemos
não é a vida que a vida é:

ela é
a vida que nos fazemos ver.

Quero a aptidão
que destroça a ciência
que coroa de begônias a arte.

Quero a solução
que é imensa interrogação
que desbanca todo teorema caduco.

A vida que sentimos
não é a sensação que ela é:

ela é
o sentimento que nos fazemos sentir.

Quero a disposição
que dá ao caos criatividade
que impõe ilusão à toda verdade.

Quero a malícia
que é silente intimidade
que destroça todo medo de uivar.

A vida
não é o que ela é:

mas sim
e somente
aquilo brilhante ou opaco
que façamos com que ela seja.

Em busca da palavra perfeita...

Viveu certa vez
um homem sábio,
um grande amigo dos homens.

Era benévolo
e cheio de intenção,
este homem de lácteo odor

amava ao homens
e dava-lhes música,
dava-lhes torpor e látego!

Viveu certa vez
um homem grande,
imenso em suas curtas penas

erguia nas manhãs
o palácio das certezas,
para à noite pô-lo todo abaixo

pra dançar sob as estrelas
e banhar-se do sol do luar,
pra caiar de valsa e loucura.

Este homem
certa feita chocou-se
ao dar-se conta

de que descobrira
a derradeira palavra
o ultimatum termus:

esta palavra
mui específica
que ia entre simbioses
mutuações e dinâmicas -

pelo azar dos azares
esta suprema
suma palavra
fora esquecida!

- -

Viveu
certa vez
um homem dos homens.

Ele havia descoberto
a palavra das palavras,
mas esquecera-se qual era.

Eras se passaram
ele nunca havia se importado
com o monumental fato do esquecimento:

jamais se arrependeu
e apesar do fardo pesado,
não deixou de erguer sua alegria sobre o horizonte.

Até que
no melhor dos dias
algo gracioso assaltou-lhe

a memória de seus dias
primeiros
primevos -

como era outro
mas também o mesmo,
este mesmo que ainda se recordava.

Enfim,
em sua dia mais feliz
no desiderato de sua ambição

decidiu-se
levemente
havia instaurado a grande palavra

a que ocuparia o pódio
dentre todas as palavras
do propósito do significado:

a palavra perfeita
era:

Mãe.

Mojo Dojo

Eu canto
sobre o ritmo:
ele está no coração!

Crocante
salpicante
sobre as frigideiras

frito em óleos búdicos
tetralegre e abelhudo
curtindo tudo que pode e mais um pouco.

A dança
de palavras:
ela está no coração!

Aquilo que tem ritmo
é coração

tudo que pulsa
que cospe

tudo que anula
e o que aniquila

tudo que jorra
verte pulula

tudo que é cadente
sopro
imanência

tudo que é passo
compasso
impermanência

tudo que tosse
sua baba sangra

tudo que vigia
e abocanha

tudo que flerta
e arreganha

tudo que tem veias e poros
pêlos e línguas

tudo que há em descabelo
em desterro e desespero

tudo que grita
que clama que cala

tudo que conquista
que se farta e segue...

Tudo isto é coração:

e se a existência toda
sua vil possibilidade
nasce e renasce infinitamente

como tudo aquilo que pisca
o universo e seu além
é também coração.

Apoptoses

À meia-noite
o Dia começa.

Eu sou aquilo
que se supera a si mesmo.

Por muito tempo
busquei o infinito

até enfim captar
que querer o tudo
era querer o nada...

Por muito tempo
busquei a verdade

até enfim revelar
que ela é fria, sem vida

o real obtuso
que não se pode afagar
é seco e frígido,

mas a ilusão
Ah! a ilusão!
nela tudo que respira tem seu lugar.

Preler

Minha sede
e a tua sede
são irmãs:

pois que a água
é uma só.

Serão meu amor
e o teu amor
irmãos?

- pois que o ar
é um só...

Do Fundo Do Mar

Chegaste ao mundo
em todo seu esplendor,

a vida te ensinará
com amor e alegria

a unir mente e espírito
a atravessar todas as pontes.

Vamos dar as mãos
e juntos, ver o nascer do sol
do fundo do mar.

A vida irá te prover
experiência e ternura

assim como proveu a mim
ao pai, à mãe e aos irmãos

a vida irá sempre prover
de beleza e pureza, de luz e paz.

Vamos dar as mãos
e juntos, ver o nascer do sol
lá do fundo do mar.

Bem sei que ainda choras
provavelmente até grites

mas haverá sempre força
pra libertarmos nosso mundo

teremos sempre a certeza
de que o mais importante não tem preço.

Vamos dar as mãos
e juntos, ver o nascer do sol
no fundo do mar.

Posso ouvir à distância
vindo com os ventos do futuro

uma canção verdadeira e profunda
que está chamando por nossos nomes

sinto que elas nos chama
e que você pode ouvir também:

Deixa-me te dar a prova,
basta dar-me você sua mão...

Vamos dar as mãos
e juntos, ver o nascer do sol
lá do fundo do mar...

Da Grande Muralha

Havia um homem
cuja ocupação obscena
ofendias aos transeuntes
nauseabundos e incrédulos:

ele não fazia nada
senão esmurrar
em punhos nus
A Grande Muralha.

Dia depois de dia
noite depois de noite
desferia os golpes, tensos
furiosos, contra a pedra e o tijolo,

pele carne e osso
versus a rocha ígnea e ignota
sangrava, perdia lascas de si
mas jamais se interrompia:

Para isto nascera
era seu sumo propósito.

- O indivíduo regular
de estatura astral mediana
inconformado, vez em quando
protestava contra a moléstia
daquele que desconhecia o sofrimento.

O que esperava tal homem?
Onde queria chegar?

Se ninguém jamais se dera conta
de que socos cerrados, pouco a pouco
abriam caminho na parede ogra.

Investida após investida
as migalhas e pedacinhos iam se desprendendo,
pela tortura, lentamente um buraco nascia e crescia.

O homem jamais refletira
sabia que se um dia interrompesse
sua ode obtusa, enfim sentiria toda dor,
que até então não tivera chance
de adentrar-lhe à consciência,

sabia que estancar,
se importar com as opiniões
se preocupar com a falácia
o asco e o temor dos pedestres,
significaria seu fracasso,
a queda sem volta.

Tornara-se um imoral
diziam as bocas secas,
tornara-se um indigente
lamentavam os amolecidos.

Mas o homem golpeava
sem se cansar
sem se questionar:

ele tinha um sonho
a visão do outro lado.

Do outro lado,
do outro lado da lenda intransponível,
ele sabia:

lá haviam verdes prados
regatos claros e tépidos
toda fauna e toda flora intocadas
de suas primeiras infâncias.

Do outro lado,
lá haveria pesca e caça
lá crianças abusadas e safadas
correriam levantando as saias das tias,

lá haveria silêncio e ar puro
lá a terra seria virgem e digna de cultivo,
os pássaros cantariam em paz
os leões partilhariam as ceias com as hienas e cães do mato.

Uma vida humana
era ainda curta,
mas não demais.

Havia ainda tempo
tempo de perder pele músculos e nós de dedos,
arrancando pouco a pouco a solidez do muro,
que daria passagem ao destemido.

Havia ainda tempo
de conquistar o amor
a missão
a deidade do que vinha a ser...

- Anos e décadas correram,
a juventude voou
e o cinza dos pêlos e cabelos
pousou no semblante do herói,

que na extrema seriedade da batalha longeva
parecia sutilmente sorrir.

A dor
para ele,
nunca fora dor.

Cada murro
era um degrau
em direção de seu supremo,

eram inspirações
duma saga de coragem e prudência,
aventura não banal
de um que buscava o outro lado.

Tivesse ele parado por um instante,
todo horror faria-se visível aos próprios olhos,
o esforço se perderia.

Era um gênio imoral,
desprezava as consequências odiosas de sua tarefa
o isolamento,
a fome de explicação das testemunhas revoltadas
a ânsia de um término
por parte dos que rangiam dentes contra qualquer vigor.

Desprezava a tristeza
que causava exatamente aos que mais o amavam,
a compaixão e o ressentimento que despertava
entre os mais instruídos dos fracos e covardes.

...

Havia um homem
cuja obscena ocupação
finalmente rompeu o laço da prisão
abriu buraco largo o bastante à peregrinação.

Tão logo pisou sua terra prometida,
como o primeiro maratonista
ao entregar sua mensagem,
desabou para jamais levantar.

Caído, combalido
mas do outro lado da grande muralha.

Em seu leito de verdes aromas
confirmou a convicção de uma vida:

havia ainda mundo
havia ainda homem e guerreiro
havia ainda água corrente e futuro.

O longo trago
do horizonte transparente
primeiro e último no peito que cessava
trazia consigo, ao vento

o cheiro da esperança
o som quieto da vitória
da alegria imponderável.

- O buraco se alargou,
muitos fizeram a travessia
agora simplificada,
(muitos haviam tentado escalar a muralha
outros escavar por debaixo dela,
sempre sucumbindo
pelo oxigênio rarefeito das alturas
ou pelo ar ausente nas profundezas)

o homem e seu punho
foram esquecidos,

mas de seu corpo
decomposto sobre a relva
brotou uma árvore sem nome
que dava frutos inéditos,

-dali uma nova floresta cresceu
e com ela uma nova pátria
e sua nação.

Carta Para Ninguém

Eu te cativei
sem querer
e sem saber.

Um dia nos encontramos,
você já me conhecia
e eu não conhecia você.

Talvez
me interessei demais
meu coração esquentou

e traiu
o frio da educação,
o olhar e sua resolução...

Perdi você,
porque gostei de você...

Quem sabe,
eu não sei...
se foi no momento sério
ou naquele muito solto

se foi eu ter voado
ou ter pisado no chão...
eu que havia te inspirado
fui pensar em pegar tua mão...

Há muralhas
que canhões não derrubam,
também não há argumentos
para quem já está convencido.

Se eu te amo,
se você é minha grande paixão!...

mas você me esqueceu
e eu caí numa contra-mão...

Perdoe o destino
o desencontro de almas
a tristeza despropositada da confissão,

ou abençoe o destino
as distâncias necessárias
a morte daquilo que nunca chegou a nascer.

Húmus d'Emoção

O que pode um homem
oferecer?

o que pode um pequeno
minúsculo
ínfimo
caótico
projeto de quê
homúnculo -
oferecer?

Oferecer ao mundo
à existência
aos valores e conceitos
à gratidão,

que pode um famigerado
transviado
transladado
bicho papão
cão e seus ossos enterrados,
oferecer?

Os mesmos ossos
ninguém os aceitaria
e noutros termos
sem eles pereço...
que carne sobrevive
sem sua estrutura pedregosa?

Que posso oferecer
senão tais perguntas
tais pontos retorcidos
contorcionados de farra
que posso ofertar
senão o som do coração
sintonia profusa radial
o que senão a melhor ação?...

Se o sorriso
nutre tanto, é tão importante,

por que?
por que não estamos travando guerra por ele?...

Luneta

A criança
é muito mais
que a criança.

(criança é uma nomenclatura abreviadora
para um ser humano em desenvolvimento)

Ela é o futuro todo.

Você molda o futuro
como barro

pela alma
de cada criança.

- Sentir
é uma habilidade
que se pode perder,

sentir
é um dom
real

do corpo
da vida...

precisamos exercitá-lo
sempre,

sentir
as emoções...

Psiônicas

Estou para além do bem e do mal,
mas não tenho sífilis...

Ninguém erra de propósito,
mas os persistentes
erram com propósito.

(me faz querer ficar...
te faz querer ficar...
me faz querer ficar...
não te faz querer...?)

Amigo
tem que ser pras horas difíceis,
pra quando a gente vacila também:

memória pro engano
só vale curta

que o que fique
tatuado
no coração
inscrito a laser
-literatura plásmica-
no cerebelo

seja o prazer das pequenas alegrias
de cada aperto de mão
cada abraço e gesto incompreendido

seja a liberdade das influências estranhas
mas também completa dependência
nas entranhas
na água e no sal!

Todas as cores do mundo
como todos os sentimentos
todo gozo e toda gala
as repúdias e ressalvas

todas as dores e alegrias
as nações todas do cosmo
cantando e dançando juntas
sob as estrelas luas e sóis,

as infinitas cores
nascem todas das mesmas três...

Há pouco
que eu possa fazer

senão agradecer
e irradiar o melhor de mim,
melhor que afinal bem sei qual é:

meu amor incondicional,
minha brasa agradável
que põe o xamã a tossir e o índio a cantar.

Musaico

A dança
desperta o espírito,
o corpo.

A dança
dá corpo
ao espírito.

Sala de estar?
-não tenho...:
tenho sala de dançar!

Gelo Fino

Se o espírito
vem do corpo
e vive com o corpo,
graças ao corpo...

Por vezes talvez
invertemos nossos valores
pra vivermos uma vida correta,
que nos causa mal...

para alguns,
a simples constatação
da existência
e da vida,
é suficiente
justificativa,

pra que tudo seja visto
e sentido
como perfeito,
como inevitável
e infinitamente necessário.

Outros esperam respostas,
ou recompensas
quem sabe...

talvez esperam a atenção
e o carinho
que jamais receberam
exatamente por tanto se exasperarem
nessas faltas.

Olhamos demais pro que não está lá...

e o que não está lá
será sempre algo que vem da nossa imaginação,
íntima e pessoal porquanto dura.

Você está congelado
quando seu coração não está aberto:

se eu puder derreter seu coração
nunca estaremos distantes...

O amor é um pássaro
deixe-o voar,

deixe toda a mágoa
em você morrer.

Apadrinhado

A barra
é dura
e pesada.

A barra
é fixa
no esquadro
da porta da cozinha.

A barra
é escola
e profissão.

A barra
é despenhadeiro
abismo inventado
entre uma e outra salas.

A barra também pode ser um galho
que seja bastante rijo e reto para tal,

pode ser qualquer túbulo sólido e horizontal
arejado e espaçado seu suficiente requisitado.

Pendurado na barra
faço dela a quina
do penhasco,

de repente os punhos
são o elo último com a vida
e pergunto inflexo à gravidade:

se em imaginação
esta barra ao pórtico banal
fosse enfim a queda fatal e real,

por quanto tempo ainda
por quanto tempo suportaria meu mesmo peso?

Se a falência de meu apego
significasse minha morte

quanta dor eu abraçaria,
quanta aflição e terror,
quantos partos faria de mim mesmo?...

Xenocronias

"Eu sou o Escrutinizador Central,
é minha responsabilidade aplicar todas as leis
que ainda não foram aprovadas.

É também minha responsabilidade alertar a todos
sobre as consequências em potencial de atividades comuns
que podem estar sendo praticadas no cotidiano e que podem,
eventualmente, levar à pena de morte, ou afetar a taxa de crédito de seus pais.

Nossas instituições criminais estão cheias de bastardinhos como você,
que fazem coisas erradas... e muitos deles foram levados a tais crimes
por uma força horrenda chamada Música!

Nossos estudos recentes mostraram que esta força é tão perigosa
para a sociedade como um todo, que leis estão sendo feitas
neste momento, com o objetivo de pará-la para sempre!

Cruéis e desumanas punições estão sendo cuidadosamente descritas
em minúsculos parágrafos, de forma que não contradigam a constituição
(que por sua vez está sendo modificada, para acomodar o futuro)."

Frank Zappa, 1979 (introdução do álbum Joe's Garage)

Plurilética

Meu perfume
é natural:

aroma lácteo
suor da minha nutrição.

Minha água
é meu melhor perfume

meu hálito e meu alento,
minha água é minha esperança...

Geliofobias

Temei a Deus:
outrora tais palavras
tornavam sério o homem...

hoje Deus é outro,
mas ainda assim digo:
Temei a Deus.

Ria e só ria!... (é isso que Ele exige)

Temei a Deus:
agora tais palavras
hão de tornar o homem alegre!

Esfolações

Eu gosto de gente
que caga cheiroso.

Quero minhas bocetas
com sabores doces, neutros,
quero cus rosas e tenros
tesão que escorra como mel.

Homem que é homem
sabe gozar sem esporrar,
vira e mexe quer espancar
o motoqueiro filho da puta
que passa pela calçada das velhinhas.

Eu gosto de gente
que caga um cocô agradável,
porque sabem se alimentar.

Quero gente que bebe água
mesmo quando não tem sede,
porque um espírito desidratado
já perdeu a habilidade da sede.

Eu quero amigos
que sabem passar fome,
ouvir as entranhas roncarem
antes de se preocuparem em comer.

Quero meu caralho bem duro
vergonhosamente no ponto de ônibus,
quero chutar todos os imbecis
que encaram outros homens pelas ruas
porque são uns mal resolvidos.

Eu quero um amor cheio de maldade,
indiferente pra quase tudo que dói.

Quero o amor violento e desatinado,
que vai tão veloz quanto chega,
que se nutre de ódio
e tem memória curta
pra tudo que é nostálgico e melancólico.

Eu quero poder enfiar uma porra de um palavrão aqui,
sem perder minha autoridade.

Um bom poeta sabe mandar se foder
e tomar bem fundo no rabo.

Um bom poeta sabe desprezar
mesmo àquilo que certa vez venerou.

Minha felicidade é uma ofensa
mas ainda enfio o dedo sujo na ferida.

Pro inferno com toda essa baitolagem
de direitos iguais, equanimidades.

Sou leão e águia,
desprovido de piedade
desprovido de empatia,
porque já bastam minhas tripas pra cuidar.

Sou as hienas agarrando o gnu decrépito da cultura
pelos tornozelos, roendo as canelas resistentes do gado
até que venha abaixo e me sirva de refeição
vertiginosa e sanguinolenta.

Eu gosto de gente que mija claro
e que fala grosso, puta merda.

Quero amigos com quem eu possa digladiar,
que ponham em perigo meu reinado imaginário,
que me atinjam tanto quanto acariciam,
que planejem roubar minha coroa de lírios na madrugada.

Quero a insônia por ficar sem maconha,
e depois a insônia por voltar a fumá-la.

Quero homens que saibam
o que é a morte em vida,
que tenham encarado seu minotauro
e feito berrantes de seus chifres.

Quero minha madeleine desconhecida,
minhas origens caóticas e absurdas,
minha loucura juvenil e todo esplendor de seus acasos.

Tenho asas de platina fumegante,
sou anjo lascivo e mortal,
um santo entorpecido
justificando a existência e todo seu horror.

Engula-me a seco,
ou com uma golada de copaíba,
mas não me guarde no bolso,
não sou moedinhas e trocados nem lenços escarrados.

Crave-me no peito
como um talismã de diamante,
incrustado profundamente em teu mole coração,
pra que tenha em ti traços do poder.

Foda-se a estética,
a moral e os costumes.

Foda-se a arte e a ciência
deste bando de urubús fétidos
e suas apólices semióticas,
esses professores de bosta,
kantianos punheteiros, putanheiros,
que acham que entendem qualquer coisa
em suas azedas delicadezas cabaçonas
e morféticas de falsa inocência.

Gosto de quem
caga cheiroso.

O resto,
é só o resto...

Quintais

É acordado
que se sonha!

À noite,
ou quando deito
faço um passeio...

Mas sonhar,
ah! isto faço acordado!...

É bem acordado
que se sonha melhor!

Transpiração Total

o melhor
da minha vida
não te posso contar...

não é porque não queira
nem porque não deva,
contar-lhe isto é...

o melhor
da minha vida
não te posso contar

não porque tenha medo
nem porque cause dor,
pavor ou sofrimento...

Todo melhor de mim
não cabe em palavras
não se explica ou ilustra,

mas não porque não se queira
ou não se esteja permitido:

mas porque nem a película
nem o disco mais duro
podem registrar

o que acontece em mim
quando danço...

E então,
quem sabe
em sã consciência

um dia acates
a uma tal incontinência,
e que você por sua vez

dance,
dance até não poder mais viver...

Dance
e morra dançando

e renasça pela vida
como pura dança da vida!

Dance
morra e renasça

mil vezes mais
mil partos mais
mil almas mais

Dance
morra por dançar
viva por todo além-vida do dançar!

E caia mais mil vezes
e torne e retorne outras mil feitas

até que seus ossos todos estalem
sua pele evolua a outro estágio
seu sorriso desenrole inato...

Então,
quem sabe
o melhor de mim
seja algo do melhor de você:

saberás logo
do que não cabe em palavras...

Xeques

Se eu te desse
meu coração
que farias dele?

Se depositasse
em mãos tuas
átrios e ventrículos,

veias e capilares
todo sangue e plasma
de minha engrenagem mor:

que farias disto tudo?

Que farias
deste objeto animado,
premeria-lhe constante
ritmado, daria-lhe passo?

...provarias do néctar
ferroso rubro seminal,
serias fluxo e refluxo
do estratagema cabal?

Farias o que, de minha carne tenra e doce?
Pincelarias-me de mel, às moscas?
Ou farias melhor, tornando poros em aço?

(apenas corroboramos com a informação
que fortalece nossa ganância, panacéias e rapapés!)

Dá-me teu coração
de bom grado,

e de bom grado
dele farei aço.

Farei aço ardente
inquebrantável -

farei dele liga
entre ligas
na corrente guerreira

farei de bom grado:
torná-lo aço e caldeiras,
lar de sentimentos incorruptíveis!

Reivindimação

Nobre andarilho
sultão dos gastos solados

você eterno jovem
que averigua as profundezas,
ouve bem
ouve bem se não alquebrei dos enigmas o maior:

o amor
é inventado

por cada um
em seu livre molde...

O amor são muitos
- e todos lhe querem tomar
encabrestá-lo nos sufixos
todos querem por ele crédito

rugem tê-lo descoberto,
revelado...

mas amor que é amor
não se desnuda
não se procura:
inventa-se, claro!

(interrupção inescrupulosa)

Deixa-me te sussurrar
ao pé do ouvido,

estas palavras lanosas
que trazem consigo a tempestade:

meu amor
é incerto e nauseante

exige tudo do amante
garras e presas afiadas

meu amor é do mundo
é seu tanto vagabundo...

Este meu amor
que montei esboçado
por força de teimosias

é um tanto tarado
vive de quebrar protocolos
adoro cafuné ombro -colos!

...é bem indecente
mas de razão, potente
é um amor inconsequente

frágil volúvel volátil
às vezes até me escapa
corre embora com as lógicas!

...este meu amor,
que usei pra dominar o mundo
nada tem de surdo ou mudo

mas já dormiu imundo
já cantou a lama e o caos
amamentou de leite à pedra!

Um amor tranquilo
de paixões calmas

quase um autismo
de brio e ternura,

o olhar de águia
pestanejando o bote

impassíveis cálculos
e enfim a queda, o mergulho:

assim, pesca, o meu amor
pesca a cada dia,
do mar do sabor,
a dança e a cor.

(interrupção inescrupulosa)

...meu amor
é meio vagabundo
meio tarado

mas pensa amplo
e pisa fundo -

diz-me você então:
vale ou não a intenção?

que ouro valerá mais
que a ilusão de tal invenção?...

Cool Bop

A vida
é bem mais dor
que prazer,

mas depende de nós
dobrar todas as leis:

fazer da vida
perfeição e alegria.

Gomada

Tudo no universo
é elástico.

O aço mais firço
a obtusidade da estrela de nêutrons...

se há uma Excalibur,
ela e sua rocha

são também elásticas...

Distenda-se então!

Alongue-se
oblongue-se,

a vida são os elásticos
os flufs e as pererecas
a vida é o frescobol
o sexo selvagem...

Estender ao invés de entender,
rebater e evitar debater!

Chuchus abóboras
quiabos e inhames,
tudo mais que é pegajoso

Copaíbas e janagubas
haxixes seivas favos,
e tudo mais que é grudento e borrachudo -

Aqui tens o essencial,
toda a nutrição nos elásticos
seus repiques rebotes e estouros...

Tudo no multiverso
é elástico
ao infinito:

quiquemos pois não,
quiquemos!

(o bom poeta
não contempla
mas completa,

o melhor poeta
interpreta)

Chávena De Pólen

Uma flor
não me basta.

Não sou uma flor,
uma flor é muito fugidia.

A flor
logo se transforma,
logo é outra
desfaz-se em frutos

e dela não resta o doce
nem o azedo
não restam a casca, os gomos
nem as sementes.

Se eu fosse uma flor
como poderia sorrir
quando brotam os frutos?

Se eu fosse uma flor
como poderia voar
quando tudo seca e decai?

Uma flor
não me basta:

sou campos -
campos floridos!

Sou campos floridos
e suas florestas adjacentes!

Sou o deserto impetuoso
e as hienas que o rodeiam,

o matagal ciliar
os riachos de bebericos
as feras e insetos
o mel e a geléia real.

Sou campos floridos
em vigor sazonal,

e se hoje sorrio
e vôo sobre as nuvens

é porque minhas flores murcham,
mas há sempre outras a desabrochar...

Não me basta
ser uma só flor...
sou campos -
campos floridos!

Políquiros

O poeta
sabe
coisas...

-ah, se sabe!

e sabe mais
por não sabê-las
medidas ou extensas...

Onde está
realmente
a poesia do mundo,

os que amam, sabem:

ela está principalmente
em não saber
exata ou pontuadamente
qualquer coisa...

talvez...

as coisas,
que nos saibam?...

(de tanto amor que deste, agora te quero retribuir)

Me deixa,
me deixa entrar...

Por favor
é só isto
pouco que peço:

me deixe
sempre
entrar
em ti

me deixe
sempre
ser o sopro
musical

o baque
sonoro
sensato
do acento metálico

o encontro
do ponto
na síncope
do compasso...

me deixa entrar
sempre
por todos os lados

por todos os centros
todos os núcleos
e quimeras imaginárias...

(de tanto que deste, agora te quero retribuir)

A urgência
grita
berros de amor
afoitos

-um sentimento
que não se podia esconder,
o medo
de que a grande árvore caíra!

Ai, este meu sorriso torto
este nó cego no âmago -

O Sonho
evanesceu...

mas a mãe
guiou
através da perdição,

A Árvore
realmente tombou,
mas ouça bem filho meu:

se eu tivesse
força para tanto
eu te deixaria
aos teus próprios desígnios,

mas não...
te imploro:

traz-me de volta!
salva-me, suplico-lhe!

Sonha outra vez!

O Sonho morreu...

mas outro ainda vive secreto!

Sonha outra vez!

Casulos

Eu gosto
dessa coisa
de me emocionar...

Gosto até!

Lágrimas na goela
que não escorrem,

uma faísca estranha
fundo no coração

iluminando com paz
as esquinas da eternidade.

Eu gosto
curto bagas

essa coisa assim...

essa coisa toda...

de a gente
se emocionar...

Crugiveria

Ó abençoada aurora!

Sob o duplo crepúsculo
da noite chuvosa,

Ó aurora da sabedoria!

Roçares da liberdade
da supremacia volúvel,

ai afagos felpudos
e olhares oraculares,

a vida é uma ode
com seus engasgos
rouquidões, desafinos
mas bem marcada harmonia

leve e intensa melodia
os dedos cantam os toques
de amenas fúrias improvisadas,

que não há amor
sem interpretação -

interpretação dos fenômenos
esparsos e lânguidos
em suas correlações...

A vida
é o nonsense

mas damos a ela
o ar de toda graça

Ela vem do caos
mas lhe extraímos a noção...

E inventando a beleza, por fim
terminamos por estabelecê-la
realizamos sua presença na existência.

Combonos

Um homem
tem de saber
ter suas favoritas

e mais que isso, tem
de saber mui bem
escolhê-las.

Um homem
deve saber
alimentar-se de enigmas

alimentar-se do caos
da incompreensão rugidia
do poder da semente diminuta.

Um homem
tem de aprender
a ter suas favoritas

e tornar-se mestre, em
fazer delas enigmas
incompreensões
e sementes...

Trimão

Se na prática
não há diferença
entre o eu e o objeto,

se sou das coisas o mesmo
em quântica inefável
se sou pedra e ar...

Mas há nisso desespero:
ser todas as coisas -
e nenhuma!

Pois se fria e calculadamente
sou o dentro e o fora imoderados,
poeticamente

abraçadamente
há sim uma linha esgazeada
que me permite um nome entre nomes...

aquilo mutável
vulnerável mas feroz

que subsiste em mim
de toda adaptação

-aquilo que define
esta pele que chamo minha

aquilo que a separa
de uma e outra peles:

não é científico...

a fronteira...

é poesia,
pura e salgada
criação poética...

Grátis Gratidão

Queres saber
dos mistérios o maior?

Queres encontrar
em você seu melhor?

Queres ver
além-de-ver
toda magia se reter
toda alegria se sorver?

Desejas...?
... tal visão?...

Pois nada há mais simples:

Apenas
pense em ter
gratidão para com a vida,

crie vera e profunda gratidão
para com a vida
e a melhor ação
sobrevirá.

Do Caos à Lama

A lama
me chama.

Fria
molhada
mas tão passível de calor
tão receptiva à ensolação.

Só quem dançou na lama
sabe que ela esquenta sob os pés.

Deus
dançou sobre a lama do vazio
e do pisoteio nasceu o cosmos.

O melhor de mim
dançou sobre a lama
e da jornada veio a alma.

Alma
e lama
-um anagrama inesperado!

Deus criou a lama
como berço da alma,
e se em sirius ou centauros
houver uma argamassa díspar disforme
composta das substâncias mais absurdas,
mesmo que não haja linguagem
nem a mínima noção do senso
ainda em tal mundo distante,
daonde brotar ali vida -

Isto será ainda lama.

( ... )

Serão suficientes?

As palavras?...
dificilmente...

Com palavras não consigo
colocar a lama sob teus pés
descalços furiosos bailarinos...

tens de te locomover até ela...
louco, mova-te!

À lama!

Vem entender
àquilo que,
somando ar e um relâmpago

terminamos por chamar
de ser humano.

A Árvore Dos Sonhos

Não podemos
nunca
abandonar nossas origens...

e sei
que o eu
melhor meu
nasceu do ventre do atabaque...

a pensar comigo
imagino
se não gostarias de me acompanhar...

se te apetece
o pito, -

o doudo dulce
os préstimos
as alturas sublimes?

Vem
vamos viajar
até a manhã chegar

beber um bom vinho
destilar do sonho
a realidade
as promessas mudas...

Vem
corra
cumule impulso

veloz venha!
não olhes!
-apenas ... veja!
veja tudo,
tudo que é cada nada!

há tanto tempo...
que te quero dizer...
isto que me engasga...

todo este amor
que recebo
e que busco retribuir,

e só peço por uma coisa,
só peço pela humilde paciência
pelo canto de flauta do pássaro eterno...

(é finda a metamorfose, rompe-se o casulo)

Gratidão.

Gratidão.

Gratidão.

(é finda a metamorfose, alça asas a borboleta)

Silêncio.

Pé de Moça

Não me deixe te dizer
em que acreditar
ou como fazer tuas coisas
viver tua vida.

Não me deixe insistir contigo
no que é o bom e o ruim
no que é a honra ou a desgraça
com quantos paus se faz uma canoa.

Não me deixa te dizer
como eu não deixei dizerem pra mim
como não permiti você se intrometer
nem abri todas as portas da alma -

Porque tais e quais portas abertas só atrapalham o trajeto!

Não me permita te ensinar
nem tampouco se faça de sonso
evite ao máximo pensar como eu penso
porque do que penso até eu mesmo pouco ou nada sei!

Não me deixe delinear em ti
as bordas e núcleos do sonho
os fios e gumes agudos da opinião
não me entregue teus valores
nem os deixe a ver navios
desfaça-se do modelo do exemplo
esqueça a regra e os títulos

-mas atenha-se ao que segue,
o fixo e ilusoriamente fixo
a aura da permanência irremovível

atenha-se ao eterno interino
à tensa ternura do que vem a ser
atenha-se ao sopro da imortalidade:

porque, realmente
uma imagem
vale mais que mil palavras.

Invicções

Abracei o impossível -
Fiz amor com ele.

(de mim parte uma seta de anil chumbado
que atravessa o coração do mundo)

Abracei a vida,

todo seu descaso, todo seu horror
abracei dos males o pior, toda dor
abracei de braços abertos, em flor
abracei a vida e sua violência cabal

E ela
Ah imensa e eterna musa!
Ela com seus braços luzidios
de fúria esparsa e misteriosa
Ela com seus dedos
tateando as bordas reversas do infinito

Ela me abraçou de volta
Ela me sorriu de volta e assentiu
Fez de toda vida o meu despertar...

e então
terei morrido e tornado?

terei num piscar de olhos
visitado a fonte das fontes
reencontrado a origem das origens?

Pode um lapso
a lástima dum átimo de esquecimento
oferecer desta vez uma terceira inocência?...

(de mim parte uma seta de anil chumbado
que atravessa o coração do mundo)

ESTÓRICO