O Derradeiro Culto

Minha religião é a dança
É este meu último culto.

Quando danço rezo em silêncio
Uma prece muda e ardente
Rogando ao sol e ao céu pela consciência da inocência
Inocência soterrada pela dor da culpa.

Se me vejo com uma missão na vida
É de lutar por exterminar o sentimento de culpa no homem.

Quando olhamos a formiga
Carregando seu pesado fardo sete trezes mais pesada que si mesma
Não louvamos sua força extraordinária
É algo natural
Inevitável
Ela é tão poderosa porquê é sua incumbência secreta.

Do mesmo modo
Vejo o leão e a hiena o abutre e o cão do mato
Lutam pela caça
Por sua sobrevivência
A raposa tão esperta
Ou o gambá com sua arma fedida tão exdrúxula
E não lhes gabamos nenhum heroísmo
Não nos admira a superação que o bicho faz de si mesmo
Como se o fato de ele fazer isto sem a chamada inteligência
Tornasse seu esforço menos valioso que aquele do homem.

Mas quem disse que a inteligência não é só mais um instinto?
Não é toda sabedoria apenas mais um meio pra se sobreviver?
Não é todo mito e superstição apenas mais um meio pra se evitar a dor a aniquilação?

Se tudo na faunaflora é tão livre
E ao mesmo tempo tão inconsequente
Porquê seria o homem a grande exceção da existência?

Temos o livre-arbítrio
Dirão em voz alta os revoltados
Que não podem aceitar que a vida faça por nós o mais importante.

A vida perfeita
Nos molda como barro.

Nosso pior erro é crer que somos tão diferentes
Que somos a grande vitória divina num universo irracional.

Porquê crendo que o homem é tão especial
Esquecemo-nos do mais óbvio.

Esquecemos que nossas contas bancárias
Que o suor da face e o pão na mesa
São somente meios pra alcançarmos o futuro
Assim como é quando uma abelha morre protegendo sua nação.

Então porquê não podemos ser também irracionais neste sentido?
Nos libertarmos de toda culpa insensata que nos forçaram a sentir?

Que loucura pensar que o grande criador seria tão vingativo
Tão mesquinho
A ponto de vigiar cada mínimo passo do homem
Para puní-lo ou recompensá-lo
A ponto de fazer o homem sentir-se a pior matéria
O mais incorrigível erro.

O grande pecado é não termos nos divertido o suficiente em nossa estória!

O grande pecado é sentirmos vergonha de nossos desejos
É reprimirmos a paixão tão direta do toque.

Quero meus amigos sem culpa no coração
Percebam-se livres
Inescapavelmente livres.

Somos inocentes
E se amadurecemos
É somente porquê nos tornamos conscientemente inocentes.

A inocência é inerente
É a base de todo pulso de todo ânimo.

Senão
Que sentido faria?
Que sentido faria um universo em que realizar os próprios sonhos é sinal de traição?
Um universo em que viver sem preocupação é sinal de irresponsabilidade?

Querem culpar o homem por suas ações
Julgando se sua intenção é honrada ou um vício
Como se no fundo simplesmente não estivéssemos buscando a simples noção de fazermos parte de tudo?

Uns se sentem integrados
Somente pela vingança
Somente pela destruição do menor
Ou pelo sofrimento daquele que nos dominou.

A salvação verdadeira é viver uma vida sem vingança
É concretizar os planos por amor à própria obra
Por ânsia de fazer fluir um objetivo prático
E não por necessidade de sobrepujar
Não por vontade de fazer-se grande humilhando a todo o resto.

O que pensamos ser certo e errado
É algo que foi construído pouco a pouco
É algo útil que se tornou um hábito
E depois como hábito terminou parecendo algo obrigatório.

Mas que loucura não é dizer que algo seja certo só porquê todos fazem igual!
Que loucura é pensar que os costumes e a tradição sejam mais importantes que nossa alegria!

Porém
Sacrificamo-nos o tempo todo por isso!

Pagamos impostos fraudulentos
Pra tornar mais ricos os que já são zilionários
E não existe uma lei que impeça que a lei moderna seja imposta
Porquê o maior exército é o que define a justiça de todos.

Se a violência é o idioma de alguns
Se só violência chega aos ouvidos do teu próximo
Fale sua língua
Use sua verdade como espada afiada
E parta ao meio o desgraçado que despreza o próprio hálito
Assim quem sabe
Na dor que causou a si mesmo
Ele deseje algo melhor
E então quando a semente da ternura germinar
A dureza de nosso olhar poderá se converter em carinho
Porquê agora o estúpido já balbucia novas palavras
Pede-nos algum ensinamento
Mesmo que sem admitir.

Mas não aconselho que se viva só pra ser exemplo pros outros
Muito menos aconselho que se viva só pra curar os males alheios.

A verdadeira cura vem de dentro
Não é o remédio que cura
É o tempo e o respeito pelo óbvio
O mais banal
Que insistimos em deixar de lado pra nos cegarmos
Porquê apesar de a vida de um cego ser menos colorida
Deixando de ver as cores ele também deixa de ver as dores.

Se transmito uma missão
Um ensinamento
É que vivamos sem culpa
Que vivamos por nós mesmos
E esqueçamos que um dia esperamos ser recompensados por nossas virtudes.

A virtude ah sim como é valiosa!
Como é bela a profunda benevolência
Como é brilhante a pura bondade que partilhamos
Mas não espere recompensa por isso!

Seja você mesmo seu melhor amigo
Seu mestre e seu próprio juiz.

E aceite sua circunstância
Aceite sua condição passageira
Com gratidão
Abra seu espírito com tranquilidade
Sem pressa nem ansiedade
Acalme-se
Relaxe e abrace sua solidão
Construa o silêncio tão ativo da consciência
Não deixe que as palavras ocupem seu pensamento
Pense um pensamento pensado
Não um pensamento escrito.

O que mais importa é ter prazer
Mas nem todo prazer é pro bem
Aliás
Aqui se torna perigoso meu discurso
Porquê descubro o fato de que quase nenhum dos prazeres modernos são pro bem
E por isso precisamos fundar uma nova escola do prazer
Em que a evolução seja a fonte de alegria
E por isso a disciplina e a força sejam nosso gozo
Pra que nossa saúde imbatível seja nosso paraíso.

Então o sangue que corre em nós estará redimido
Por novamente correr como corre o sangue de qualquer bicho.

A inteligência será nossa habilidade de entrosar
De equilibrar
Ao invés de conquistar roubar e usurpar.

O homem será sempre a criança em meio à natureza
Será sempre o ingênuo riso de malícia da criança que se entrega à brincadeira
E toda metafísica e todos os dogmas serão só ritmos diferentes pra se dançar
Fábulas estranhas contando como o homem errou
E também como alcançou sua divina meta através da confusão.

Amém à harmonia
E que os ventos nos carreguem
Como plumas tão leves
Esvoaçando na batida colossal do coração da terra.

Cosmodésia

No começo
Não tem começo
Porquê quando começou mesmo pra mim a coisa toda já tinha começado
Eu mesmo já tinha começado.

Aliás
Só fui me dar conta bem mais tarde
Apesar de ter lutado sempre pelo momento em que eu finalmente poderia me dar conta
Das coisas
De mim mesmo vivo
Como alguma coisa importante
Alguma coisa que valesse e significasse algo importante.

Eu queria ser muito importante
Mas de uma maneira completamente insana.

Aliás
Eu comecei com essa estória toda de me dar conta de mim mesmo bem num momento de insânia
Meu primeiro dupla-face
Alice no país das maravilhas original.

Comecei a me dar conta completamente alucinadamente
E óbvio não entendi bem o que se passara
Só fui entender há bem pouco tempo
E no fim também acabei entendendo que essa coisa toda de entender ou não é bem mais complicada que eu imaginava.

O problema talvez fosse bem esse
Eu vivia demais na minha imaginação.

Queria ser muito importante pra evolução do próprio universo como um todo
Veja só!
Mas só conseguia fazer isso em alguma grande imaginação fantástica
Em que conspirações das mais absurdas se encaixavam perfeitamente na minha ânsia de fazer algum sentido profundo por existir.

Eu queria que meu amor fosse tão grande
Mas tão realmente imenso e poderoso
Que num passo de dança num trance sagrado
Eu conseguiria usar a energia de todo amor à minha volta pra dar uma pane no sistema
Mas tipo
Dar uma pane mesmo no sistema.

No grande sistema.

Como se de algum jeito eu pudesse descarregar uma faísca transcendental na atmosfera
Que de algum jeito faria eclodir o amor mais violeta em todos os viventes do cosmos
E com isso o pulso magnético e afim seria tão absurdo
Tão monumental e poderoso
Essa faísca do amor infinito
Faria dar uma pane nesse mundo de máquinário
Que tem sugado do ventre de nossa mãe Gaya
Essa explosão invisível de prazer e paixão
Em nome da terra e de tudo que é mais sagrado
Essa explosão invisível do imenso amor do homem por sua própria evolução
Seria tão perfeita
Que faria todos os relógios mecânicos pararem
Todos os circuitos elétricos tudo mesmo daria pau
Um bug do milênio se assim convém
Só que um pouco atrasado claro
Eu queria pensar que ele viria em dois mil e treze.

É
Tudo uma grande conspiração fantástica
Em que o amor venceria
E claro eu seria talvez o ser mais importante que já existiu.

Seria o rei de todos os bailarinos cósmicos
E o próprio tempo pararia
E viveríamos então imortais eternamente numa rave
Uma rave que na verdade era um sonho perfeito
Um sonho perfeito como uma dimensão paralela real
Em que todos teríamos tudo que mais desejamos
E que a vida se tornaria um paraíso de imortais depois do fim do tempo.

Engraçado
Pensar que estou fora do tempo!

Saber que estou fora do tempo
Num sentido um pouco diferente.

Então de algum jeito as coisas continuaram.

Eu fui descobrindo o quão profundas eram minhas ilusões
Dei sorte de me dar conta do quão absurdas eram minhas crenças
De quanta coisa eu tinha aceito em nome dessa superstição
Construída em nome do amor supremo
Que livraria a terra dessa monstruosidade gananciosa que não preza o próprio lar
Pouco a pouco
Entendi minha fantasia.

Entendi a construção estranha que fiz pra mim mesmo
E apesar das imensas desilusões
Pouco a pouco
Me tornava grato a mim mesmo.

Grato por sonhar este sonho maluco de mudar as coisas
Mesmo que de um jeito tão egocêntrico e vaidoso
Imagine
Eu dançando ser a coisa mais importante do cosmos
Se eu não danço
A vida pára
Se eu não der o passo de dança perfeito do amor
O mundo não tem salvação.

Tudo bem
Eu estive cego
E agora posso ver.

E apesar das tristezas terem se tornado mais frequentes mais profundas e mais inconsoláveis
As pequenas verdades que fui construindo
Pouco a pouco
Formaram um verdadeiro alicerce.

Busquei minha saúde
Verdadeira
Busquei entender a natureza e seus efeitos sobre mim
Pra ser o máximo que a natureza me permitisse ser.

É o que busco ainda
Saúde
Sol
Rios cristalinos
É o que buscamos sei bem.

Então aprendi que a mentira pode ser bela
Porquê ela inventa muitas vezes algo engraçado só pra fazer as emoções rolarem
Aprendi que a própria verdade na verdade é um tipo de mentira
Uma mentira mais engajada mais honesta
Tudo bem
Mas ainda assim
Uma invenção bem humana
Mesmo as ciências
Com sua grande valia pra compreensão da existência
Mesmo as ciências são baseadas em padrões selecionados que nunca podem ser medidas perfeitas e absolutas da realidade
Mesmo o número é uma ilusão porquê com ele supõe-se que haja coisas iguais
Objetos iguais que se pode contar
Sendo tão óbvio
Que nessa imensa argamassa do universo
Não existem fronteiras
Não existem leis escritas
Não existem bons e maus nem certos e errados.

A coisa mais difícil que aprendi
Foi que na vida tudo é empurrado
Tudo é engatado.

As coisas se empurram
Somos uma infinita desenvoltura de empurrões supergalácticos
Essas pequenas borboletas de amor atraindo e repelindo com o simples ato do foco
Nossos olhares na verdade que nos movem pra cá e pra lá
Não são as pernas que nos levam pra lá e pra cá
E sim a escolha do olhar.

Mesmo que do olhar dum cego
A escolha de simplesmente se aceitar que estamos vivos e que temos olhos que abrem
E que estar vivo é estar acordado
Acordado e sadio e sob controle de si mesmo.

Tudo está aí
Não se pode evitar
Há sim muita miséria
Sofrimento horrível
E gente sofrendo paga bom dólar pra ver gente sofrendo em cadeiras de cinema
E existem jardins de orquídeas
E veredas e oásis secretos.

A decisão que podemos tomar é a de aceitar
Respeitar o fato tão incrivelmente belo de que não temos escolha nenhuma
Podemos somente viver e viver e viver.

E pra viver
Tem-se que ser um consigo mesmo
Dono de si
Mestre dos próprios sentidos.

Só isso
Saúde
Lucidez
Harmonia com a natureza.

Nossa loucura sonhou os sonhos mais distantes do amor
E agora ela acordou pra realidade
De que temos que agir.

De que temos que colocar nossos ideais em prática
E treinarmos nossa bondade
Mesmo que tenhamos que vestir a máscara da alegria estando tão tristes ou angustiados
Porquê pouco a pouco
Aquele que aprende os gestos e trejeitos do alegre
Aquele que atua sempre a alegria e busca a escola do riso
Mesmo que comece com falsidade
Enterrando e esquecendo tanta coisa ao fingir a felicidade
Aos poucos o treino vira prática
E então vivência e experiência
E o que aprendeu todos os gestos do amor
Imitando os irmão que admirava e invejava
Logo é realmente contente
Consegue perceber-se como o que quer ser.

Não é mero trabalho de visualização
Tem muito beijo abraço e aperto de mão.

Tem paixão que esquenta e esfria o coração
E o importante é que tudo flua
Que alcancemos nosso silêncio
Pra que nossa maturidade venha com plenitude.

Pra que nossas palavras não brotem de nossas cabeças
E sim de nossas mãos e pés
Mãos que massageiam e pés que bailam.

Estas palavras que quero dizer
A luz e a alegria sem rótulos nem preconceito que meus pés dançam sobre a terra
Todas as estrelas que encontro reluzindo nos olhares dos amigos
A música que minhas mãos fazem quando dançam
Tocando o vento como se fosse instrumento.

Amo rodopiar
E sentir-me leve e desperto.

No mais trabalho minha postura
Busco a perfeita hidratação.

Quero ter mil e um filhos.

Quero navegar o mar e conhecer o mundo
E quem mais não quer?

São uns poucos que controlam o sistema
Mas o sistema não é tudo
Eles acham que têm nas mãos o mais importante
Mas não sabem que o amor brota escondido
Que nossa redenção
Tão distante e para poucos
Vem e vem de boca cheia.

O amor sempre vence
É o que sobrevive
Passa o tempo e as lições são as mesmas
Muda o nome do messias
Mas botar em prática que é bom nada!

Daí pareço um cara comum
E sou feliz por isso
Porquê me tornei alguém importante porquê aceitei que sou pequeno
E que nessa pequenez posso ser algo inteiro
E esse inteiro mesmo que pequeno pode fazer uma diferença.

Do mesmo jeito que outros pequenos fizeram a diferença pra mim
Me ajudaram a simplesmente parar e aceitar
Encarar a solidão da viagem
O fato de que mesmo juntos seremos sempre como o andarilho solitário
E que mal há nisso?
Toda borboleta todo bicho enfim é assim
Sua solidão sua busca por evolução sua grande saga por fazer parte do ciclo
A necessidade que a natureza nos impõe
Natureza sem dó nem piedade
Que nos ordena sermos fortes
Pra que nossos filhos sejam fortes
Porquê só assim seremos verdadeiros elos com o futuro do mundo.

Nossos filhos são também aqueles a quem ajudamos
Aqueles a quem damos lições humildemente
Pra que os que estão insensíveis possam vislumbrar a chance de amarem-se a si mesmos.

É isso que desejo incentivar
Por mais perigoso que isso possa ser.

Amem-se a si mesmos
Pra que possam respeitar a si mesmos
E então a clareza finalmente trará a recompensa maravilhosa da visão
A simples visão transparente das coisas
Um olhar purificado
Que não precisa julgar nem venerar
Que observa o mundo com olhos de águia e desliza sob o sol com a ginga da serpente.

A eternidade está em todo lugar
E apesar da vida individual de cada ser acabar
O que acho que Deus nos dá é isso e nada mais
Você nasceu
E se deu sorte percebeu
Que a eternidade existe
E que apesar de não sermos imortais
Ela existe e sempre existirá
E por isso sempre existirá esperança de que a vida brote
Esperança infinita de que de algum jeito
Dentro das infinitas explosões cósmicas
O tempo tão sábio
Faça a vida aparecer em algum canto
E evoluir até sentir
Até pensar e amar.

É estranho pensar que não seja algo planejado por um criador
Por ser tão perfeito como é
Mas sei que meu pensamento humano é algo que veio a ser
É uma longa estória construída por um longo tempo sobre este mundo.

Por isso aos poucos também me tornei mais ignorante em muitos sentidos
Pra que pudesse me concentrar naquilo que realmente preciso
Mesmo sabendo que tudo poderia ser um grande equívoco
Aprendi que tudo em nossa condição é algo que veio a ser
E que basta estudar e meditar pra se entender o grande enigma.

As coisas são empurradas
Não somos responsáveis.

Nos culpamos até por termos nascido!

Como poderíamos ter escolhido?

Tudo bem
Respostas não faltam
E tenho certeza de que sempre haverão respostas mais completas e irrefutáveis
Porém realmente as coisas simplesmente são
Simplesmente estão aí.

Não nego que em algum nível exista sim consciência e escolha
Como momentos em que realmente você olha pra uma coisa e pergunta pra si mesmo
Direita ou esquerda?

Mas é tudo instinto
É tudo uma longa estória acontecendo
E a gente no meio
Sendo empurrado por tudo
Sendo empurrado pelo amor graças aos céus
Que só assim pra chegarmos aqui
Pra realmente sairmos do tempo enquadrado.

Daí parece até um pessimismo
Pensar que tudo que acontece não tem como evitar
Que tudo que acontece é porquê tem que ser
Mas sem existir Deus.

Tudo obra do acaso.

É bela obra do acaso
Isso ninguém discute
Apesar de muitos reclamarem em suas poltronas do excesso de tédio.

O que importa no fim
Fim este que é mais um começo sem começo
É que neste acaso
Neste vir a ser sem sentido ilógico e caótico
Eu me dei conta de mim mesmo
Me dei conta de que não tenho escolha e de que tudo é como tem que ser
E nisso algum significado nasceu
Uma estranha liberdade nasceu.

Não nasceu em nome de algo nem de alguém
Apesar de muitos algos e alguéns fazerem parte crucial da coisa toda.

É como se nada realmente importasse
Porquê tudo passa
Daí posso viver minha vida sem levar as coisas tão a sério
Porquê percebo que minha própria existência é pequena demais pra ser levada tão a sério
E com isso aprendo a rir de mim mesmo
Consigo relaxar no fato de que não tem volta
E me dá coragem pra dizer como amo estar vivo.

Um amor tranquilo e também ágil como predador.

Um amor natural
Integrado
Sólido como a certeza do sol
E maleável como o curso do rio.

Ode Reconciliadora

Ó filósofos da justaposição
Ó mártires da infecção moral
Tantos e tão promissores
Vinde
Vinde firmes duelistas
Vinde ao encontro deste sincronário silógico!

Ó amantes da perversa arte do real
Ó manhãs e tardes de outono do pensamento moderno
Quanto ledo engano
E quanta maravilhosa sedução
Quanto pleno mistério
Ah vinde amigos
Vinde musa amada
Mergulha neste oco
Neste vácuo abstrato
Prosa branca aglutinante de dores e amores
Deixa-te cair descer ralo abaixo
Vinde ao encontro desta letárgica convocação
Deste honroso pedido de ajuda.

Ajuda-me a iluminar o ambiente
Dá-me tua espúria ansiedade
Deixa-me destilá-la
Em barris de carvalho e mogno
Deixa-me destilá-la dez cem mil vezes -
Vinde irmão
Pisemos juntos às vinhas de nossa esperança
Extraindo sumo doce de concórdia
Receita clássica siciliana
Pisemos e repisemos à matéria prima de nossa loucura
Extraindo o suco ácido e sadio da maturidade.

Ai maturidade bem pregada
Soubesse eu o que é esta maturidade
Talvez os desafios se me escapassem
Talvez o tempo imétrico me saudasse
Ai saudosa singeleza do asceta
Vez ou outra nos mordendo aos calcanhares
Dizendo creia
Creia estúpido e fogoso
Creia em tua maliciosa imaginação
Entrega-te afoga-te
E não questiona!

Ai desta maturidade tão falada
Conhecimento dito por tido
Na boca do povo parece tão simples
Tão fácil e simplória missão -
Mas ai de mim
Passam-se os anos
Agrisalhoam-se-me os cabelos
E em apelos peço um recomeço
A mim mesmo.

Vinde amigo
Reúne-te sob este teto
Por uma noite que seja.

Deixa-me tocar-te
Deixa-me irritar-te
Odeia-me imploro-te
Detesta-me pra me entenderes!

Não sei que faço de mim
Eu sou uma egrégora indiscernível.

Sou tuas horas de prostração
Cansaço impudico da escravidão
Sou teu orgulho que quer compaixão
E que nega a si mesmo o bálsamo da embriaguez.

Quero enlouquecer
Mas também quero longevidade -
Quero a insanidade déspota
Do que se aproxima sempre mais das estrelas.

Ai desta ode cósmica
Sem promessas nem refutação
Lar de referências deferentes
Majestosas insinuações -
Sou começo meio e fim
Orquídea fantasma no jardim.

Vinde astuto
Vinde guerreiro
Vinde ninfa vinde minotauro
Quero todas as bestas e todos os anjos -
Vês já que me acontece?
Solícito
Rude
Maracatu de baque parado
Repico estrimiliques
Expulso o frio e limpo os diques
Quero um nada como agouro
Um vazio como estalagem.

Vazio virtual
No subtexto da entrelinha.

Sou um branco sem fim
Tatu e morcego serafim
Sou a esquina da constância
Lirismo e grosseria em alternância.

Ó filhos do amanhã inalcançável
Ó futuras gerações filósofos piscianos
Vinde
Vinde a esta incerteza
Vinde à imensidão da beleza
Da rispidez da natureza -
Quero ser casa de repouso
E campo de concentração funesto
Pra que aprendas a dormir e redescubras à curiosidade
Pra que estafes-te quase morto tão doído pra que trames tua fuga e minha nobre derrocada.

A Falange

Decifra-me ou devoro-te
Brada a esfínxea aparição.

Argamassa indecorosa
Um oceano de caquinhos de vidro nanoscópicos
Holotropia miscigenada ah minha adorada indiazinha
Ah santíssima confirmação
Do direito à folia
Da liberdade ao pé de mim.

Liberdade inédita em imposição
Além das tolerâncias e economias
Liberdade fresca em sagração
Desovando primaveras infinitas -
A grande goela me engole
Entorna-me como água
Sedenta e gozosa
Ah santa gula em farrapos
Nada melhor ela me disse
Nada melhor que realizar uma vontade do coração
Nada melhor ela me sussurrou
Nada melhor que ver crescer um amor se entroncar.

Dê-me o troco
Sem trocadilhos.

E eu a disse que a amava
E confesso-o incompreensível
Ao vão eterno do silêncio
Disse-lha que a amava ainda de novo
E dei graças aos céus por ser ouvido -
Ah o homem em sua estapafúrdia
Jovem troça de si que faço de mim
E repouso-me ao colo
Sente cá peço abrupto.

Sente que lá vem estória
Como dizia-se antigamente.

Sinto então
Sentado sim pois não.

Sinto
Algo que não quero descrever
Nem tentar pontuar.

Sinto minha vida toda entre vinte dedos e treze juntas
A paixão rigorosa a que ela me suscita
E que me faz calar.

Fui falangeado
Em organogravura
Fundido liquefeito
Sou um agora com o caldo
Malagueta em brasa na fervura
Fui falangeado
Pela força do amor
Amor de zilênios pouco a pouco cumulado
No coração do mundo o relicário
Todas memórias dos viventes
Todo amor de toda vida
Em depósitos na Agarta
Vou visito a fonte
Um instante penetrante
Sinto vejo sou a vida e quero mais mais sempre mais
Piscadela escapulida
Sorrisinho trintetrês
Sou um agora triturado
Um com a ponte e com o abismo
Um com a altura e com o declive.

Subo escalo suo persisto
Direi de novo que a amo nisso insisto
É meu dia tua alegria
Dizer-te bela e vê-la livre
Voando atriz com seus penduricalhos.

Sobrolho

Logarritmos da heliotropicália
Fúcsias e grenás aos hematófagos!

Amo os erros
Porquê amo a vida.

Xifopagia inelutável dos morosos
Minha solidão em multiplicidade
Desconheço-me e desconheço-vos
Assim me descubro sempre novo.

Envelheço e me assusto com detalhes desgovernados
Olheiras escuras e poros maltratados
Ronco rouco como motor sem óleo -
A dança me salva
Sempre ah sempre
A dança me salva.

Magnésio fervendo
Meus nervos atacam
Colidem com a cadência pomposa
Singularidade da arte livre
Da arte viva do cotidiano
Quero antropofagia sensual
Quero a calma frenética do bailarino em improviso
Vôos hiperlúcidos do acossado pela magia -
Magia esclarecida
Fria como o luar
Magia científica
Do cético que não se entrega ao dissabor da incerteza.

Vá bem
Estroncho
Me desdigo.

Mas quem diz que a ilusão não é bela?
Quem açoita sem remorso à própria fantasia?

Buscara por éons em vertigem
À derradeira verdade -
Como pudesse empunhá-la como espada perfeita
Fazer-me invencível à força de viver sob a pressão da suprema verdade.

E então me dei conta
De que a verdade é só mais uma invenção
Talvez uma descoberta acidental
Descoberta esta muito mais infeliz que aprazível
Já que a tal verdade só machuca -
E o grande Tudo É Possível
Funesta armadilha da superstição
Me acalenta no devir de minha alienação.

Quisera viver a verdade
Possuí-la
Como quem possui um amuleto sagrado.

Mas dia após dia
Me desfazia da certeza
Me frustrava com a inevitável ilusão -
Ah bendita ilusão
Como somos cegos
Tão involuntariamente cegos em nossa juventude
E tão imerecidamente vingativos pra conosco mesmos por causa desta cegueira
Como se pudéssemos escolher
Como se houvesse decisão
Como se o arbítrio fosse inerente
E a consciência algo em si díspar do organismo.

Vejo então meus instintos em amarga luta
Amarga porquê incompreensível
A mim e ao olho que testemunha também
Incompreensível e tão aconchegante
Ai da minha juventude mambembe
Quero me aprochegar de mim sem trégua
E também de soslaio.

Quero saber de mim como o sol sabe de si
Quero me construir como a vespa rainha constrói a colméia.

Dragões anciãos percorrem minha espinha
Ventre acima esterno adentro
Cães de treze cabeças me pedem afago
No pórtico último da eternidade.

O desdém que descubro nas ruas
Me alimenta duma esperança horrível
Esperança solitária
Horrível porquê incomunicável.

Quem sabe
Ah quem sabe
Quem tem tempo pra tais talvez
Perigosas experiências do imoralista
Vou de encontro à aridez da sobriedade
E de repente tchibum
Despenco no oásis da amizade
Louco astuto e transparente
Invento brincadeiras mortais
Se me corta a pele
Escorre a rubra amálgama
Zinco e estanho de mim expostos
Trocando faíscas com o horizonte
Sinto-me frágil
Provo do líquido
Alimento-me de mim
Drácula autossuficiente.

O frio me desperta
Atravanca minha ação
E me desperta à minha fraqueza.

Quero o sol em mim
Os dias ensolarados de minha alegria
Seja ela a fantasia utópica
A fé desajeitada do ímpio
Quero o sol de minha saúde
Mergulhá-lo ao oceano
Fazendo ferver o mar da vida
Meu sol se petrifica
Faz sumir em vapor a água toda do mundo
E num átimo desconfiado
A filosofia abandona a erudição
A psicologia abraça toda sabedoria.

Ah saborosa sapiência
Tantas cores de amores
Ah miríades de musas -
Ela sorri-me
Gesticula atenções
Diz gostar de minha dança
E tudo que me importa
É que a ficção satisfaça.

Transcognição

Selva virgem em meu seio
Nova alta esperança
Num dia sagrado sem fim
Dia noite adentro noite afora
Versa a madrugada sua ode gélida
E um sol verde queima em meditação.

Sol secreto
Nos confins de minha mente
Nos enfins de meu rebolado -
Sol flúor
Perversamente polimórfico
Fujo da sombra de minha fé
Pra me tostar sob ti
Me deliciar nas carícias cafunés e rocejos
Beijo à borborelha
Ah divina centelha
Gramática viva do riso
A ciência da unidade.

Dialética disléxica
Em gírias soturnas
Trovoadas e mandingas -
Homem ao mar!

Aos braços de Iêmanjá
Às voltas cos sopros rosados
Sou terra jardim e podador
Sou ganância benevolente em busca de sangue denso
Sou sede de dor e infecção e redenção e cura
Sou meu lento dissipar
Nesta plutocracia desgrenhada
Sol esverdejante e magenta
Num cubículo
Caiado do branco da lâmpada artificial
Temeroso do envelhecimento precoce
Da feiúra da moralidade caduca
Ranzinza tão tenro e terno
Não quero minha aposentadoria pro diabo com o INSS!
Pro inferno com todas as taxas fraudulentas
Quero um inimigo perfeito
Quero mais que as fronteiras geopolíticas como Nêmesis pessoal.

Acabasse a luz do mundo
Num tilt global
Ou HAARP fizesse eclodir o núcleo de plasma do planeta
Ou tempestades solares
Ou a chacina dos usurpadores -
Ai idealismo sangrento
Ai me dou conta
É desta mesma fonte que bebeu o nazista
Desta saliva venenosa bebeu o primeiro sacerdote
Dragão entre dragões quero ir-me embora de minha Komodo.

Bóra Pasargadar!

Pralém de toda dor
O êxtase natural
Contração de toda fibra
Tensão no arco do coração
Me dependuro no trapézio
Cambalhotas sobre timo
Dou de cara com a alegria
Metalúcida sinergia
Entrego-me à corruptela
Matreirice do brejeiro
Sina fértil em ruminos.

O céu de minha boca canta
Cospe estrelas no papel
Sóis sistemas galáxias
Caldo doce reluzente
Os pontinhos vão dançando
Se espalham pela vida
Estrelas cadentes alcançando os distantes
O céu de minha boca gargalha
Rios de nêutrons bósons quarks
Em fileiras invisíveis
Ponto a ponto se costuram
Brinco de ligue os pontos monto constelações
Signos e mitos nas curvinhas das letrinhas.

Sou o grande grito do silêncio da pedra!

Sou o som sem som
Do ruflar de asas da borboleta
Borboletrando desmedido
Desmentindo descabido
As promessas mortas da política
As certezas frias do cético cínico
Me afasto de minha pátria -
De que me vale uma família que nunca passa de antípoda?

Ai funesta ingratidão
Deus me livre de um dia maldizer aos meus pais
Pelo erro livre de me terem gerado
Pelo grave sarro de me terem incumbido a missão mais confusa.

Me faço de experto
Pago de gênio
E uso a estória toda em prol do Narciso em mim.

Então a vaidade se desgasta
Desgasta tudo afinal
O orgulho se retrai
Na visão ardente do futuro incerto
Arrepio arredio
Sincopando órbitas em minh'alma
Me dizendo
Agora
Agora jovem
Agora em frente jovem
Agora sempre em frente sempre à vida jovem!

Jovem ainda
Me indago
Da suprema nutrição.

Aliança entre foragidos
Pacto de amor calado
Vamos de peito aberto
De queixo duro e erguido
Ah bem erguido
Que os que manipulam a massa
Pensam que conduzem a carroça da relevância
Mas são palha seca ao vento.

A verdadeira imortalidade existe
Está na coragem da felicidade.

A felicidade abstrata
Conceitual
Felicidade duma saúde pusilânime
Felicidade ciosa
E em cio arrebatado
Por cima de toda miséria
Felicidade triste da atualidade
Por cima de toda insanidade capetalista
Felicidade simbólica
No brilho do pranto do meeiro
Que pôs seus filhos na escola
Altivo em alinho
Carpinando a horta que alimenta o burguês
Metido a ianque sabichão
Não faz idéia da enxada em ação
Mãe do centeio de seu pão.

Sou gato preto sem aviso
Espelho quebrado em mil pedaços
Sou mil patas de coelho mil ferraduras enferrujadas
Hiperssonia do morcego
Sou o frio pontiagudo da cachoeira.

Vem
Vem te banhar fedorento
Vem te limpar sujismunda!

Tenso o eixo?
Só se for de chuveirada quente?

Minha verdade não é morna
Nem doce -
É neve que chamusca
Santo giló.

ESTÓRICO