MANIFESTO TRANSMODERNISTA

            Nunca vi brinquedo mais lindo que um catavento. O poeta é como um catavento, coisa que só faz alegria em girar na captura daquilo mais intangível, quase abstrato. Feliz a criança que encontra riso num catavento, e feliz o poeta que se aventa e faz rodopiar seu verso.
            Perdi tudo mas não perdi a fé. Foi aí que desisti de desistir. O jardim. As borboletas, os gafanhotinhos, os passarinhos tantos os azuis os verdes os amarelos que se sentem em casa aqui com os mamoeiros que deixo todos deles. Aqueles besouros, todas as coisas de regar, a grama a pitangueira que nunca deu fruto, o que seria deles todos se eu desisto? Até aquela mosca feia que faz a gente se mexer na moleza do domingo estirado sob o sol. Que seria deles?
            Existe uma hora no caminho, você olha, a ponte está logo ali, é uma passarela bonita Cecílio Mataraso (sic), dali debaixo você sabe porque já conhece, quando chegar ali em cima dá pra ver mil carros, prédios, monumentos distantes, a gente pode espiar o mundo passar e é bonito. Vai chegando vem subindo, quando estamos ali em cima dela, só pensar que é bonito não adianta, tem que estancar. É isso que é viver. Precisa estancar o passo, se debruçar com alegria e paciência, vão passando meio esquiando aquele montaréu de automóveis, do outro lado da passarela vê-se já o arvoredo todo do grande parque. No domingo de sol, já sabemos, vai ter muita gente e é bonito pra quem usa os olhos pra ver. Com calma devagar, ali em cima, a gente espera, espera a cabeça sossegar de brincar com os detalhes. Respira fundo. Solta a vista. Logo a coisa ganha um fluxo muito próprio, pronto você viu a cena. Ela está passando. Tem mil detalhes de brincar. Cada carro uma vida um jeito uns com pressa outros trabalhando na penitência, tem os alienados os esquecidos, os que vão tão sozinhos mesmo acompanhados. Mas isso não conta. Você espera a cabeça sossegar e mostrar o jeito que tudo anda juntinho, ali está a vida. Você vai ficar triste, abestado quem sabe tenha medo, logo se alegra se deslumbra se treslumbra. Numa sombra do caminho um rapaz tão humilde sentado meio na calçada comia sua respeitosa refeição instantânea. Ali estava a vida, mas é falta de educação parar pra ficar reparando desse jeito. De volta lá na passarela, você riu você chorou, daí tudo bem, agora vamos passear. Vamos beber água de graça nos bebedouros e ver as meninas bonitas deslizando em seus patins. Muitos não falam coisa com coisa, um menininho vai tentando chamar atenção da mãe que olha pro telefone portátil como se o pai estivesse ali na forca. O menino, pobrezinho, tão bonito, ela nem vê o mistério de criança nele, que pode amar um catavento. Você vai dando bom dia pros que não estão ali pra regatear. Minha estatística contou que nove em cada dez são respondidos. O povo vai passando, muitos correm, parecem lutar contra si mesmos, fugindo da feiúra de um corpo flácido. Vivem pouco e o coração que aguente. Tem uns que vão olhando as paragens das águas, os tremeluzires, bolhinhas de sabão no meio dos balões coloridos, os patos e gansos mergulhando. Desses eu gosto mais, mas quem sou eu pra dizer o que acho dos outros. Você vai sentindo, não pode flertar que perde a concentração. Você quer ver a vida, e ela é tudo isso, esse montão de coisas que a gente desconsidera porque ficamos caçando essa ou aquela coisa. Imagina, trocar todas as coisas por uma ou duas que já logo cansamos e queremos melhor. O sol vai crestando a pele. A gente chega bem pertinho da estátua do Pedro Álvares, nossa como é imensa. Pensar que um homem sozinho martelou tudo aquilo. De longe você não sabe como é grande. E só quem é muito curioso vai descobrir aquele enxame de abelhinhas sem ferrão alojado ali ao pé da capa suntuosa do Cabral. Eita português que escorre mel, e o mel é o Brasil que inventaram que ele descobriu.
            A poesia está em todo lugar. Ela é a vida, que se a gente capturar enquanto respira, pronto, isso é boa poesia. Tudo bem o garrancho o poeta se não decifrar depois reinventa. Muitas árvores. Eu gosto de ficar de pontacabeça naquelas barras de ferro, umas meninas queriam fazer igual as outras chacoteavam. Pra mim é um alongamento ótimo, fazer o quê. Tantos com fones de ouvido, será que já ouviram a conversa que têm consigo mesmos? Tantos cachorros cachorrões cachorrinhos arrastados como mobília pela sala vazia, será que eles entendem o porquê de tal e qual lugar ser bom ou não pra fazer as necessidades? Uma hora a gente vai voltando, você chorou você sorriu, tinha um monte de surpresinhas que mais vale você garimpar por conta no seu próprio domingo espraiado.
            A gente vem voltando, eu gosto mesmo daquela passarela. Lá estou de novo esperando compreender o mundo só de olhar. Tantas pistas tantas faixas tantas corridas. O mundo humano a cruzar pra cá e pra lá por debaixo da gente naquela imensa avenida. Novena de asfalto. Uma marreta pinga potente fazendo distração e suadouro certamente no obral. Podia ser um garimpo de mistérios. Mas isso já é invenção de poeta no labirinto tão concreto.
            E então. Então. Lá está ela. A vida, bem ali. Por cima da balbúrdia de buzinas multas e palavrões, em meia dúzia de flapflaps o passarinho atravessou tudo. A Brasil, a Treze de Maio, a Ibirapuera e sei lá qual mais, aquele emaranhado todo. Pimba. Assim simples e sutil. Flapflap, por cima de tudo, atravessou de boa que só a parafernália toda. Isso era um bom poeta. Ele ia voar por cima de tudo tranquilo pra chegar do outro lado, sem risco algum de atropelamento, pra se instalar bem de certo nalgum galho maciço e aconchegante que realmente daquela banda da passarela está cheio.
            Tinha flores roxas e rosas no caminho. Tinha amores vencidos e perdidos no caminho. Tinha um senhor dando graças por encontrar uma blusa boa jogada na rua. De dia está bonito mas à noite vai ser frio, seu Isaque. Quinhentos quilômetros por hora e eles não vão a lugar nenhum. A vida estava ali e ninguém viu. Como um crime sem testemunhas pra depor a favor. Ou contra. Já me confundi. A vida é intensa. É pura poesia. Mas só se você parar pra olhar. E esperar os detalhes virarem uma alma líquida que o coração beberica. Como os passarinhos do mamoeiro. Só se você deixar o vento rodopiar suas abas de catavento. Se não tiver vento basta correr alegre que dá no mesmo.
            Fico com a solução do passarinho por sobre as avenidas. Que a vida, se apaga. O amor, se apaga. Mas a arte, sobrevive.

Desabandono

Sequestrado por minha alma
O corpo é agora refém
Daquilo por detrás do detrás de mim

Aquilo que vê com olhos pralém do rosto
Aquilo que sabe dançar e quicar isento das gravidades

O que não ouve o som
Mas as totalidades musicais
O que não o sente o cheiro
Mas captura o flagrante fragrante
Que não entende o sentimento
Nem se importa em senão sentir

Que é pra alma o entender?
Que é senão sentir com as pontas dos pelos e cabelos?
Que é a razão senão o que sente o cerebelo?

 Sequestrado por minha alma
O coração agora cativo da arte esmera
Amando em vôo sucinto acima dos bueiros

Subjugado pelo supremo silêncio de mim
Aquilo eterno que não desabafa nem desalenta
Aquilo sóbrio e sórdido que beija a tormenta

Transparência cor e profundeza me ajeitam
Toda canina lealdade vibra ao pé de mim
Renasce a paixão pela folha em branco

Mãos que pela superfície alcançam o âmago de tudo e nada
Hálito dileto soprando bálsamos sutis no exposto
Despertar alegre do orvalho que o mundo renova a cada manhã

Aquilo que respira ritmo e ginga antes do ar
Aquilo que abraça as estrelas com braços abertos

Que investiga o pulso do impulso
Sem ceder à densa repulsa
Que não troca por troças a trova
Nem morre de sede ao deserto
O que não rejeita os espinhos
E faz da dor doce oceano

Que é viver para a alma?
Que é senão se erguer onde tudo faz dobrar?
Que é o viver pra alma senão sonhar o sol na meia-noite absoluta?

Sequestro divino
A alma cheia de graça
Não negocia resgate
Nem ata os punhos do prisioneiro

Sequestro sagrado
A alma criminosa
Não contesta a liberdade
Nem esconde as chaves do carcereiro.

DESTINO: MIADO

Numa esquina congestionada
Dum cruzamento crucial
À Avenida Brasil

Travado ao trânsito
Sob sol de meio-dia
Avistou-o - Lá estava

Folgado livre
Sem brio nem culpa
Em passinhos delicados

Vagueando pelo cimento
Das vagas dum estacionamento
Um belo bem cuidado gato vira-lata

Desconhecendo o tráfego
As horas e seus lamentos
O bichano pairava tateando

Angelical fenômeno
Satisfeitíssimo por certo
De si da vida e do mundo

Em sua pelugem maltada
De expressivos bege e creme
Lânguido ignorava o poeta

Ah o poeta!
Que num minuto de semáforo
Bem notou tamanha felina alegria

Lá estava - Contemplava-o
Lá estavam das luzes os mistérios
Tempo espaço sabor e liberdade

Naquele gato se encerravam
As soluções todas da sina humana
Altos saltos sobre muros

Caçar besouros passarinhos
Destreza força garras estendidas
O chamego de moças desentendidas

Capôs abertos para sempre
Estradas largas fontes calmas
Ossadas sem fim ao fio dos dentes

Mas o poeta - Ah o poeta!
Confrontou-o com o amor
Com o valor das responsabilidades

Que eram agora a vileza e a nobreza
Que eram a música e as letras
Todo o certo e errado dos homens?

Das filosofias estacionadas
De tantas almas congeladas
Que restara então da vontade?

O poeta aguardava respostas
O bichano porém virou-lhe as costas
Com o mais santo desdém que havia

Honra moral virtude o futuro inteiro
Suspensos balouçando aos ventos
Urravam silentes por uma resolução

Mas era enfim tarde demais
Retiniam as buzinas impacientes
O farol abrira há um instante-
E a perfeição perdida
Ronronava já distante.

Descalçado

Cada palavra negativa
é um soprão
que ergue um tufo de areia

Cada sentença aquieta
ou instiga
a tempestade no deserto

Furacão de areia que cada um
consigo carrega
impedindo os olhos de se abrirem para a luz.

ESTÓRICO