O Náufrago




Em sete dias
Uma eternidade.

Lá estava ele
Perdido há anos
Barba imensa
Uma manta pútrida
Mas forte como leão
Ágil como golfinho.

Era um idílio
Aquela catástrofe
Que em certo ponto
Chegara a ser benção
A ilhota distante
Parca em caça e fruta
Tinha entretanto uma fonte
De água cristalina morninha.

O náufrago
Único sobrevivente
Filho único de tudo
Dentre destroços
Que rolavam sobre a praia
Numa noite descobriu
Sementes!

Suas novas amigas
Sorriram com ele
Sete dias
Uma eternidade.

Passaram os dias
E uma eternidade
De labuta desmamada
De plantio grotesco.

E então sutil
Ele esfregou as pálpebras
Com um vulcão nas entranhas
Avistou um navio.

E a nau bizarra
Monumental
Parecia manobrar
Vinha o confrontar!

Mas ele agora
Teve medo
Teve fúria
Imaginando o mundo
Onde estaria então
Com todo seu ódio
Sua usurpação
Pedágios
Leis trabalhistas
Afinal ali
Ele estava em paz
Em seu éden fitoterápico.

Sentiu ciúmes de sua criação
Queria sua colheita
Desmanchou o grande SOS
E quando de bote vieram
Buscá-lo de volta ao mundo
Ele fez escárnio insistiu
Que ficaria ali mas forçaram-no
Então ele correu e correu e correu.

Não passou muito
Interessados
Gente culta
Decidiu seguir o rito
Nadar até achar
A ilhazinha do famoso náufrago
E lá foram
Pencas
E levavam também sementes
A desordem e o progresso.

O pária virara rei
Ria-se modesto
Sabia pescar isso sim.

Tempos depois
Em meio à sua farta agrofloresta
Ele era poeta
Sem folha de papel
Anotando a mais doce melodia
No areial ardente e vadio
Obra que ao fim de cada tarde
Se esvaía sob a pressão das marés.

Todos sete dias
Eternidades.

Psorando

As notas escorrem
O futuro incerto
Pro qual quero estar pronto
Do qual quero sair ileso.

Se não ileso
Ao menos vivo
Ligeiramente articulado
Pro low beat sinistro
Da ressaca apocalíptica.

Os dedos frios
Roçam e grasnam
Sob a matéria invisível do ar
As entranhas guerreiam
Contra os alergênicos boçais.

Sua originalidade
Era apenas um bom segredo
Sobre suas principais influências
E muitas vezes elogiar
Era apenas elogiar repticiamente a si mesmo
Te acho bom porque tenho bom gosto diz-se.

Essencial
Urgente
Era reconhecer
O mútuo
O trabalho
Os filhos
A mãe eternidade.

E tudo ainda estava pela metade
Quando ele achou que tudo se perdera.

Tudo ainda estaria
Sempre pela metade
Haveria uma linha infinita
Cortando ao meio o tempo
Em futuro e pretérito
Por toda existência.

Debarte

A luz vem da treva
Então não será a treva
A luz original?

E o que é o dourado
Se pros pássaros
O preto é prata?

Quem desabrevia
As mágoas supressas
Desta tirania incremental?

E quem sente com a mente
O sentimento que não mente?
Quem ainda lembra
Que o mais importante
Costumava ser o tempo
A liberdade da estrada?

Aonde estamos
Praonde vamos
Se alguém sabe
Está guardando pra si.

Quem somos
De onde fomos
Se descobriram encobertaram
Ou quem tentou falar
Calaram.

Ai o slow motion da clareza
Santificada seja a lentidão do circunspecto
Resguardem sob treze chaves
A nostalgia do vigor
A letargia do calor.

Dê-me a sauna
E então o mergulho gélido.

Dê-me o sonho impossível
E então a nua e crua
O desejo inapto
E o eterno inédito
O inevitável.

Da Cisão

Lá fora não se sabia
Se fazia sol ou se chovia.

Aqui dentro ele de canto
Soslaiava o belo grupo
Que se fartava à mesa.

Mas o indigesto
O improvável
Não eram pratos
Sim espelhinhos
Não era de comer
Era de cheirar.

Por longos momentos
Ele testemunhou quieto.

Os rapagotes e moçoilas
Da mais culta estirpe
Mergulhavam na poeira.

As testas e as gengivas
Flageladas de pureza
Da brancura tóxica
Alinhavam carreiras
Diziam estou aberto
Mas iriam se fechar.

Enfim ele exauriu
Não pôde mais olhar.

Foi à mesa curto e grosso
Se quiserem saber de mim
Sabem onde me achar rugiu.

Lá fora
Se chovia
Ou sol fazia
Pouco importava
Ele não tinha pressa
Estava fazendo por merecer.

Chegara a grande resposta
E ela pouco ou nada dizia.

Adestrava-se a ambição
Era tempo de cuidar do jardim
Abrir a ducha pras borboletas banharem.

Tinha dia
Não era fácil
Mas com coragem
Se se ajudava
A inteligência
Vencia.

Seu compromisso inadiável
Era com a honesta confissão
E no fim ele soaria trejeitoso:

- I had
To go see
About a girl.

Gloriosidade

Psicólogos natos
Predestinados ao labirinto.

Quando o assunto é sentimento
O que conta não é a intensidade
E sim a duração.

O que o trance uniu
Nenhum homem separa.

E enfim nos reconhecemos
Depois de a eternidade
Ter começado e recomeçado tantas vezes
Antes de chegarmos aqui nesse proseado.

Não há como ter força infinita
Mas se se está em acordo com o infinito
As pequenas ações trazem ele consigo.

Periculoso talvez
Talvez depois me açoitem
Maldito traidor espernearão
Como ousaste amar tanto?
Como ousaste dar-nos o elixir dos imortais
Se és pra escolha incapaz?

Infeliz cachorro
Exageradamente sincero
Inescrupuloso e irresistível
Como ousaste nos seduzir?
Como ousaste nos decifrar e satisfazer
Pra depois nos fazer correr?

Ai dama sagaz
Me engula o galanteio
Ele suspirava
Me deixa te elogiar
Me deixa dizer as coisas
Inspiradoras
Que mesmo descorrespondidas
Me alimentam de movimento
Me deixa te congratular
Por teres mantido as linhas
Esguias
De tuas filosofias
De mãe ursa.

Ela vagava pelo mundo
Desatenta ao fato de que
Do outro lado do bairro
Um sonhador semeava na imaginação
Uma deusa perfeita que tinha os exatos traços dela.

Então na esquina inesquecível
Ele veria ela de relance
Por um instante
E se perguntaria se estaria sonhando ou acordado
Se a vida não era a armadilha mais doce
Se o amor não era o sabor mais estranho.

E nunca mais se veriam outra vez
Não senão nos sonhos
De alegria mais apaixonados
De que jamais se lembrariam ao despertar
Como uma vida não lembra de si ao começar.

Da Deusa Da Lua

É um milagre
Que sorri de volta.

É o sabonete molhado
Escorregando entre os dedos.

É a certeza
De que tudo faz sentido.

É o destino
Que não perseguimos
Pois ele nos persegue!

É a irmã e a mãe
A musa e a distante.

É a voz doce
Da cascata láctea.

É o bom gosto
A origem do samba.

É uma miragem
Dum deserto impiedoso
Do qual não se quer sair!

É a terra prenha
O anzol dos anzóis.

É a canção sem som
A perfeição mais cabível.

É o supremo quadro
Que não se pode tocar.

É oceano frágil
Trazendo e levando
Só por se deixar respirar!

É o olho mágico
Do pórtico último.

É a marca maior
Rubrica do onipotente.

É a experiência filtrada
O melhor molde sabido.

É tudo e mais um pouco
O mistério dos mistérios
Que mal se sabe o porquê
Mas sempre sorri de volta!

Senecando

Eu às vezes tenho medo
Porque percebo como sou frágil.

A morte está bem aí
E eu vivo pouco
Muito pouco.

Entre viagens no busum
Compromissos que não desejo
Paixões que não são destino.

Eu tenho medo
De o tempo passar rápido demais
Ou de tudo acabar cedo demais
O que vier antes.

Eu quero demais
Amar tudo que eu puder
Dar tudo que eu puder.

Prometo
Ser infiel
Cacilda!

Raiou o sol
Que haja luz
No novo dia.

Guilhão

Depois que a chuva
Tiver caído
Depois que as lágrimas
Tiverem lavado tuas vistas.

Vais descobrir
Que se tudo sumir
O amor pode refazer
Num piscar de olhos.

Depois que os trovões
Tiverem falado
Depois que os relâmpagos
Tiverem sido despejados.

Vais descobrir
Que se tudo acabar
Ainda assim haverá
Amor no mundo.

Quando estranhos
Já não conversarem mais
Aleatoriamente
Indiferentes aos nomes.

Quando as buzinas
Já não tocarem mais
Reclamando do beijo
Que segurava o trânsito
De sinal aberto.

Quando o despeito
Tiver desistido
De replicar
E as ofensas sutis
Passarem ilesas
Sem resposta oposta.

Quando se deixar
De dançar
Em sonhos lúcidos
Quando se deixar
De respeitar
Os trincos trancados.

Quando toda esperança
Tiver se amainado
E no futuro longínquo
As crianças se esquecerem
Do pegapega e do escondesconde
Quando toda alegria
Estiver controlada
E do sol só restar o pó
Quando toda humildade
Estiver soterrada
E da perfeição só sobrar
O julgo da utopia.

Ainda haverão rebeldes
De corpo e alma
Cortando os pulsos
Pra regar de sangue
A terra ressecada.

Ainda haverão guerreiros
Artistas ativistas
Se atirando coquetéis explosivos
Bibliotecas da moral adentro
Institutos do arrependimento adentro.

Ainda haverão imbecis
Crendo em algo além
Rogando sem vintém
Evitando cuspir aos altos
Focinhando trufas no alfasto.

Ainda haverão sublimes
Esplendorosos doudos
Afirmando o firmamento
Do diamante etéreo que nos sustenta
Reclamando óleos tônicos
A lubrificar as engrenagens da razão.

Depois que a luz se apagar
Depois que o som se afogar
Depois do calor se esvair
Depois da cor descolorir.

Ainda haverá eternidade
Ainda haverá bondade
Ainda haverão contatos
Ainda haverão soldados.

Depois que a chuva
Tiver vindo à foz
Depois que as lágrimas
Tiverem rolado rio abaixo.

Se tudo sumir
Irás ver
Que num segundo
O amor tudo refaz.

Depois que os trovões
Tiverem cessado
Depois que os relâmpagos
Tiverem calado.

Se tudo findar
Irás notar
No mundo há de haver
Ainda muito amor.

Georgia

Minha terra
Ficou longe
Ai quanta saudade
Que sinto de casa.

Mas aquele antigo blues
Tão doce canção
Ajuda a manter o velho lar
No meu coração.

Arquitentando

Ah louco estúpido
Vadio e seus espasmos
De poeta salgado
Fedido como vulva e mar.

Ah louco eterno nobre
Aristocrata das migalhas
Sultão esquálido sob a ponte
Pianista sobre sua heroína.

Quantas vidas vives
Quantos mundos conheces
Vais além da opinião
És processo de formação
Inevitável alienação.

Se fosses doutro mundo
Ao aqui chegar
Certamente diria dos cheiros
Esta terra é feita de trigo
É feita de leite e lombo de vacas.

Se fosses doutro mundo
Diria dos cenhos
São todos infelizes
E só poucos sabem o dissabor
Da profana profunda noção de realidade.

Ai realidade fraudulenta
Escravizadora ladra
Usurpadora realidade inquebrantável
Ai planeta óbvio e incompreendido
Tuas esfinges já não atraem
Ninguém lasca mais o mármore
Esculpindo a verdade dolorosa.

Ó santo falastrão
Truculento e suculento
Quente e úmido como jazes
Inerte e compenetrado
Em teu quintal aloprado
Como repousas ardente
E mudo
Vendo as estrelas correrem
As estações reciclarem.

Ó ignóbil inútil
De punhos soltos e dedos leves
Batedor de carteiras
Podias ser o beethoven renascido
Mas viciaste-te no cômodo
Amaste demais à ferramenta
E te esqueceste do crucial.

Esqueceste-te
De que cimento e tijolos
Enxadas e bricolas
Em lugar algum chegam
Sem planos pormenores
Sem a benção genuína
Da atenção que ilumina.

Homagem

Ela vem de sopetão
Chovendo rosas e tulipas.

Ela não se preocupou
Se eu cheirava mal
O escambal!

Ela não se importou
Só o mínimo perguntou
Ela é puro alto astral!

Cheguei nela de sopetão
Com granizo de manjericão.

Ela me respondeu
Como pra um irmão
Lindos dias pra você ela dizia
E pra você dias lindos como você eu respondia.

Ela que era verso vivo
Rimou todas estranhezas
Fez dengo das destrezas.

Ela que era
O nome recluso
Que surgiria na pedra
Carvada misteriosamente.

Ela que era o último nome
Da cabala descabelada
Era bonita como sol
Era a derradeira paixão
Do sim.

Ela era a melhor poesia
Não dependia de palavras bonitas
Nem de grandes enlaces da inteligência
Seu deslumbre era o dia a dia
As vivências que emanava
Sua perfeita ode
Era mera consequência
Da vida que vivia.

Curricular

A dança
É o sétimo dan
Do silêncio.

Dançar é também
O grau supremo
Do saber ouvir.

Ninguém aprende
A aprender
Isto já se vai aprendendo
Apreende-se-se.

Mais tarde
Aprende-se a saber
Que é como ter em si
Taisquais partes de tudo.

Há boas coisas
Que ninguém ensina
Simplesmente
Sabe-se de coração
Ou não.

Há outras cousas
Que são a pura sina
Solarmente
Aí sonha-se o sonho
Ou faz-se demente.

Na apoteose da graça
Havia um sorriso secreto
De cada um
Que só Deus via
Quando admiravam uma alvorada
Quando amavam à paisagem.

O dom
Sacro
Era sazonal
Interina magia.

Fugaz nobreza
Da floração
De crer-se
Na beleza.

Beiçoqueiro

Pro homem
Bem beijar à mulher
Ele tem de ser três.

Pura matemática
Que contra os dois lábios dele
Ela sempre tem seis.

Peripérsias

Aqueles grande olhos
De mar aberto dela.

Ela que era a poesia viva dos dias e seus vendavais
Ela que fazia o tom dominador que baixava todas orelhas.

Desbravava
Escoteira
Risos
Que nutriam
A lama
O humus do sonho.

Tresvisão

A sorte acenara-lhe.

Ele tinha saúde bastante?
Perguntavam os velhos
De mandíbulas cimentadas
E peitos cadentes ansiosos.

O pior alarme
Soava
Rotundo
Num casamento
Entre ruído de geladeira
E estrondo de avião risível
Os pés diziam tudo
Atente ao frio
Atente às dobras das esquinas
Atente suave
Usa tua chave
Cadê o desespero
Que me prometeste?
Cadê o espírito guerreiro
Que certa alvorada doce
Vislumbramos sofia?
Lilás violeta
Tantas índias.

Quem não conhece o Brasil
Que me perdoe a ingratidão
A indelicadeza sem querer da mão
Que vem antropofagando de alastrão
A la tudo que é desastroso pro nome
A la tudo que desmantela as estruturas.

E por fim
Uma canção
De ninar
Intrometida
Consolando a criança
Sim criança nasceste
Não te lamente não arrependa
Ah filha minha
Descobre tudo
Que nao descobri!

Dos Esfrangalhados

De quem dança descalçado
Em qualquer pista encardida.

De quem samba meio cego
E beija os pés da atriz principal.

De quem faz muito fazendo pouco
De quem as donzelas roubam doces venenos
De quem bota o palco pra vibrar o coro pra comer
Garotada desconfusa salpicando eternidade no preparo.

De quem vê beleza na multidão
Se apaixona a toda hora no lotação
De quem corre pra lavar as roupas
E dá flores sem segundas intenções.

De quem quando pega
Faz valer
De quem quando bebe
Entorna a enternecer
De quem solta os freios na contramão
E se ilumina descartando a adequação.

De quem gosta de abacate com limão
De quem mete fundo a língua nas orelhas
De quem coloca amor em todas as linguagens e indagações
De quem não leva desaforo pra casa e se redime sem se vingar.

De quem sorri feito idiota
Pras criancas dos outros
De quem é brabo e não fraqueja
Mas se desculpa porque pouco almeja.

De quem tem frios na barriga
De quem chora sem saber porquê
De quem se arrepia todo tempo
De quem tira mel do tormento.

O melhor da vida
O mais bonito do mundo
O mais fundo da alegria
As favoritas dos grandes gênios
Isto e mais um pouco
É de quem quiser
É de quem pegar.

Cada coisinha
Em sua certa hora.

ESTÓRICO