A Peregrina

Nascera óbvia, uma dentre incontáveis. O lar úmido e escuro, paupérrimo, a mãe rotunda, obesa além de todos limites da compreensão. Mas nascera enfim, era-lhe entregue o dom da inteligência irrevogável de toda vida e ela abraçara seu destino sem pestanejo.


Cresceu nutrida de limo esverdejante, anilado. Desde a mais tenra idade fora-lhe incutida a obrigação do trabalho, mas não o via como forçado, animava-a contribuir ao banquete da família, ao estoque de inverno. E que grande família! Tão desproporcional quanto a mãe eternamente prenhe e imóvel, a infinidade de irmãos e irmãs ao contrário de gerar conflitos, concorrências, inspirava a um interminável jogo de cumprimentos, toques delicados de olás e comovais.


Amadureceu firme sem inveja dos que sacudiam as asas da liberdade e vez ou outra se estatelavam incautos na incandescente lamparina do supremo amor. No fundo de sua diminuta alma, na área imaterial e insondável de sua esperança inexpressa, talvez pressentisse seu destino especial, mas vivia cotidiana, despreocupada, humilde. Os dias longos e as noites insones de trabalho no campo enrijeciam suas pernas incansáveis, lapidavam o momentum delicado de sua presença ínfima, quase absolutamente desprezível senão a si mesma.


Colhia grãos, folhas, às vezes até migalhas. Tudo era alegria, extrema aventura deflorando seus dias tão monótonos. Ah quando adentrava o reino cáustico de um refrigerante de soda, de um restume de lanche semiputrefo! Sua sensibilidade arguta não permitia ponderação, era o que tinha de ser, vivesse exceção ou não, era o que o grande arquiteto desenhara-a a ser.


O sol guiava seus passos curtos, ruborizava mais e mais sua morenice. Ao luar seguia os rastros e trilhas conhecidos, fatigados do ritmo frenético do vaivém dos obreiros. Às vezes visitava o berçário de sua vizinhança e seus olhos brilhavam testemunhando a novidade que sem interrupção irrompia do seio da terra. Uma magia bastante objetiva dominava seus sentidos e ela nunca pensara em ser mais que o que era.


Mas os ventos calorosos da Bahia que a abraçava sopraram uma sugestão estranha certo dia. Ela começou a reconhecer vida onde antes cria ver máquinas, notou amizade naquelas imensas construções moventes que mexe remexe devastavam seus terrenos. Foi um domingo único. Ela trepou no imenso guindaste que repousava em meio caminho da areia do mar, passeava pela estrutura curiosa, até que o estrondo do movimento trouxe à tona o pânico inevitável. O veículo se movia velozmente e ela não podia descer. Movia-se rápido demais, violento demais. Ela se escondeu em meio às engrenagens e esperou.


Entre baques e soluços descobriu uma cavidade segura e lá se alojou. Quando pôde notar, voava, não como seus irmãos favoritos, mas como voa qualquer coisa incompreensível, ela estava num avião. Intrusa, sem passagem! Temia o futuro mas não podia intervir, era o que viera ao mundo pra fazer, conhecer o outro lado do espelho, a outra face do desconhecido.


Aportou confusa, foligem ácida corroí-lha as veias, poluição intransigente, sonora, visual, olfativa. Sua selva atlântica mudou-se em concreto, aço escovado e vidro temperado. O monstro em que se recluía transitava agora sob céu pálido, garoento, afora do aeroporto, através de avenidas nunca dantes vistas por nenhum de seus congêneres. Que horror era o paraíso ela dizia a si mesma! Questionava seus sentimentos até então esperançosos, regidos pela fé da inovação, da intrepidez bandeirante. Jamais veria sua família novamente, a matriarca letárgica, não ouviria mais a sinfonia oceânica nem os berimbaus de jacarés anônimos.


Finalmente sua condução estancara, num templo alvo e largo. Deus tem um péssimo gosto, ela pensou. Se refugiava entre paredes claustrofóbicas, à beira duma longa mesa de tampo transparente. Nada lha agradava, o admirável mundo carecia de ordem, de comando. Agora ela tentava escapar do sulco onde vinha metida, precisava ao menos voltar ao solo denso, seguro, caminhar novamente sobre seus próprios passos. Afoita, destemida, percorria o longo trajeto que a levaria ao chão, sua nova e estranha liberdade acenando.


O perigo não cessara, ela fora avistada! Um soprão divino a fez quicar longe, mas ela sobreviveu à queda, estava agora à deriva do puro imprevisto, entregue na nova pátria que a acolhia. Andou e andou. Atravessou o pórtico que a convidava e deparou-se outra vez com o clima chuvisquento, um odor familiar assaltava-a de emoção em meio à torrente de dissabores, ela tinha de completar sua jornada e outra vez a lástima do desejo otimista a dominava.


A fome era avassaladora, o cansaço já quase mortal. Uma retirante desavisada, excluída, veio à festa do futuro mas não estava na lista de entrada. O cheiro macio da grama molhada porém a atraía, reenergizava, e ela lutava contra a fatalidade certa, na busca por sua terra prometida.


Alcançou o vasto prado. Começou a reconhecer entes próximos dos seus, mas eles eram diferentes, mais apressados, rudes, distantes. O verde era real mas de algum modo limitado por intransponíveis muralhas, era um aquário, um pesadelo. A vertigem se apossou, não pôde resistir, desmaiou decidida a nunca mais acordar.


Um transeunte contrariado pelas linhas estranhas da combalida se acompaixou e juntou força e reforços pra carregá-la. Era outra família de muitos irmãos, igualmente humildes e trabalhadores. Levaram-na à geridora, também líder daquele lar igualmente úmido e escuro. Deram-na um gole de néctar e pouco depois ela despertou.


A matriarca de seus heróis indagava-lha de onde vinha, como tinha ido parar ali, ela tão diferente deles, apesar de também tão parecida. Ela não sabia responder, tentava explicar que nascera junto do eterno das águas cristalinas e salgadas da capoeira, mas ninguém ali nunca tinha ouvido falar de nada disso não. Por razão de experimentalismo, ficou decidido que ela seria alimentada somente do mel mais puro que possuíam, dádiva exclusiva da grande mãe, até então. Queriam reanimá-la, fertilizá-la pela primeira vez, queriam testar o poder da prole dela que se tornara uma deusa astronauta.


Ela então comeu e comeu, tornou-se gorda e já não mais conseguia caminhar, assim como sua mãe e sua mãe postiça. Uma tropa foi convocada a transplantá-la ao outro quadrante da área, pra que se tornasse matrona do seu próprio pedaço, numa inédita façanha, segunda rainha do recluso Éden fitoterápico.


Seus filhos começaram a nascer e eram touros, varões, fortificaram a proteção do que ela chamava sua Sião perdida. Não se esquecera de seus antepassados e ensinou a ginga e a mandinga onde até então havia apenas protocolo, burocracia. Foram tempos prósperos e ela enfim se alegrou novamente, leve em sua mórbida imobilidade, perfeita e lúcida em sua obesidade maravilhosa. Gerações se seguiram uma após a outra, sua espécie se difundiu e os que a haviam acolhido agradeciam aos céus pelo presente enviado sem embrulhos.


Ela nunca teve nome, sua raça não era muito de falar. Nascera assexuada mas alcançou o impossível, gata borralheira em seu incrível palácio. A única a voar sem asas de zangão, a primeira a desbravar a América intocada e suas orquídeas fantasmagóricas. Navegou ao nirvana agarrada à cera da orelha dum rapaz, a formiga mais corajosa do mundo, a grande rainha peregrina.

Da Pertença

A vida é open source
Só poucos fragam a linguagem.

Insista na saúde
E a doença se avexa
Invista na unidade
Que a diferença se aprochega.

O poeta dizia ó candura
Ó doce bálsamo da noite silente
Brilha no céu a estrelha do crepúsculo
E o estampido grave mór dissolve as fronteiras.

Quando ainda a imaginação era livre
E a medicina era o atino do hábito
Quando ainda o som era cor
A magia era são objetivo.

Depois a academia modelou o entrave
O mundo saiu de dentro do bicho
E a vida da areia foi esquecida
Amor ao sol chamaram culto pagão
Amor à luz chamaram cega maldade
Era a vez da vingança do ciúme
Guardaram a inteligência numa caixa
Marraram fita em volta e cunharam deus.

Então o artista nutriu ódio
O cético trêmulo desistiu do infinito
Mas os pássaros ainda cantavam
A chuva ainda caía tilintante
A mentira se achou verdade
A ilusão se fez de bondade
Mas os punhos se cerraram
Contra a ode incerta do medo.

No oblivion da quinta-feira banal
Quis dançar e relembrar
Da cura de toda ginga
Do bom calor da dor.

Lasqueiro

O prazo era algoz
Corria que corria
Ia tirar o pai da forca
Mas a platéia vítrea
Não deu passagem.

O zunido era atroz
Mil monólogos de buzinas
Pelo incidente imprevisto
Levou ainda bela multa
Ao ralentar desgraça alheia.

O peixe gordo ia à foz
Estancou na correnteza
Pelejava reto ao velho lar
Turbinas impediam avançar
Piracema ressecou salgou.

O marsupial e sua noz
Agarrados na tempestade
Trovões de troncos quedados
Afligiam na rubra alvorada
Banhavam de fogo e enxofre.

O menino de fina voz
Queria só era crescer
Veio mestre e palmatória
Fez piada do tal querer
Restava apenas envelhecer.

A alegria era feroz
Conheceu a solidão
Amizade do avesso
Quietou empolgação
Fez de nobre o tédio.

O pensamento tão veloz
Desceu do bom corcel
Foi tomar uma cerveja
Arrotou fel de desilusão
Fez meiavolta se enterrou.

Voava alto o albatroz
Viu longe ouro reluzir
Mergulhou em ambição
Pepita fatal o perseguiu
Do estilingue do capital.

Quantus Nexus

Pro favor
Dentro em breve
Há conselho
Com senso
Vá capitando.

Eu se desopilo
Diz de prima
Avente all
Assei o sim.

Pré ponderante
Eva e Adão
Caco fonético
Superes tático
Trouxa sem roupas.

ESTÓRICO