Canção para a Amada Adormecida

Sustos de amor.

Ela me dá
sustos de amor.

Chega pulando meu portão
Me surpreende
lavando as louças -
De sopetão!

Ela
tão aguardada
A mais amada.

Ela gosta de doces
ela dança docemente
Ela -
ela sabe se cuidar.

Ela tem sabor
sabor de amor
ela é bálsamo sobre a dor.

Vanessa bailarina
Vanessa cósmica ninfa
Vanessa musa do amanhecer
Vanessa sabe quando emudecer.

Sustos de amor.

Ela gosta
de me pregar peças
chega de fininho
passinhos cheios de calor -
Ela é tudo que pedi a Deus.

Mestra e aprendiz
é ouro tudo o que diz
Vanessa é jovem e anciã
Rainha de invisível clã.

Ela sabe bem o que quer
sabe quando quer parar
Ela purifica o ar
pinta e borda o ser.

Vanessa nua
sonhando em minha cama
Vanessa valsa
embala ginga na trama -

Vanessa tem fome
fome e sede de alegria
Vanessa sabe mastigar
pérolas e diamantes da magia -

Vanessa…
Vanessa é real?
Vanessa não tem igual!

Sustos de amor
peripécias feminis
néctar de almejos viris
séria feliz ela é ardor.

Sustos suspirados
surpresas de bem tranquilas
toques segredados
suas vozes coloridas -

A intimidade mais pura
descalçada para voar
ela carrega em si um mar
receitas da melhor loucura -

Vanessa
oásis vivo no deserto
Vanessa
gatilho de tiro certo.

Sustos de amor.

Ela me dá
sustos de amor.

Crepúsculo Psicotropical

Cai a noite paulista
A palavra pede arrego e descarrego

É disso que se há de sentir saudades
São essas as saudades que vou fazemdo
Aquilo que despois vou dizer que foi o mais bonito que vi e vivi

De pena branca ao cangaço 
Estremelicando sutil baforadas cervejentas de meu orgulho brasileiro
No baião de roda no passinho saci que vem desvendando o coração

Pelo passeio demorado
Em avenida conturbada de feriados
Papai noel nalgum lugar tece fantasias reais

Há quem presenteie mesmo o indigente cadeirante de pele negra tão negra mas dentes bonitos que não deixam a gente ficar com dó

Deus há de cuidar
Que eu me cuide pra que o Senhor cuide de mim

A noite cai
Sonhos nascem sonhos morrem
O coração pulsa alto e há uma pitada de loucura na felicidade mais profunda

Clássica esquina afinada em humildade
Sob postes caiados do alaranjado do magnésio que se mistura com o por do sol

É dia e é noite e a batucada respira
O ganza sacoleja e bebo paz

Mansidão é meu nome do meio
Que o primeiro e o último nem te conto

Sofismencantos

Da treva nasce a luz
E o negro é o pai da liberdade

É disso que vou sentir saudades
Que vou lembrar de quanto é bonito
Essa esquina clássica que é a suprema consolação

Daqui ao paraíso num passo
Mas meu negócio é capote valente
Trisco farpelo me divirto rente

A magricela de shorts laranjas levantou pra sambar

É contágio de alegria e a cerveja do poeta não pode esquentar no balcão.

Da Fidelidade Sintética

Ainda tenho esperança pelo ser humano, fé de que aquela antiga promessa se cumpra. Amo o passado e o presente como quem não tem escolha, construo a dignidade de chamar tudo que existe de perfeito pois reconheço a impossibilidade de qualquer coisa ser diferente do que é neste instante. Mas isso não elimina nossa habilidade de alterar o percurso em meio à jornada, isso não é um mero conformismo que afiança a perfeição universal a fim de abrir mão de qualquer esforço por transformação. A vida é um irretocável passível de polimento, uma obra máxima que convida à criação de novos capítulos.

Se me questionarem a sina desgovernada de acreditar na promessa do ser humano como um salto de inteligência no mundo, se caçoarem da minha vontade talvez juvenil ou otimista de ver a modernidade como um estágio belo e integrante da história de um aperfeiçoamento, faço apenas oferecer uma simples homenagem a meu avô, sábio jornalista, mestre vernacular que, em mil novecentos e oitenta, junto de parceiros de profissão igualmente prolixos, precisou buscar no dicionário o significado da palavra ecologia, quando esta subitamente passou a ser repetida por um visitante pragmaticamente vanguardista.

Se em trinta anos a ecologia passou de desconhecida ao que é hoje, quem sabe em outros trinta o ideal ainda obscuro de energia ilimitada e harmonia política global se torne algo corriqueiro e prioritário. Ainda creio na maioria esmagada, em sua vontade de superação, nos sonhos abafados da emoção, na genuína revolta do amor que semeia dúvida no lamaçal das certezas comodistas.

Sofro pelo mundo e pelo ser humano, por sua dor e seu horror. Mas sofro infinitamente mais por sua promessa, por tudo aquilo que ele poderia e quem sabe deveria ser, sofro pelo carvão que chegaria a ser diamante, pela rocha bruta enterrada que aguarda o supremo escultor. Sofro, mas alimento minha fé, com paciência e milênios à disposição, amamento a esperança de um dia a humanidade se tornar tudo aquilo que ela almeja ser.

A felicidade é rara, raros são os que vivem sem reclamar, sem culpar os divinos mecanismos pelas desgraças da superfície. Mas reclamar dos que reclamam ainda é reclamar. Danço para me libertar, canto para me reconhecer, danço e canto para me esquecer e então relembrar. A vida é fantástica, transtranscendental, é um sonho de olhos abertos e um sonho que sonha de olhos fechados. Minha alegria é a lealdade de amizades, é compartilhar elogios rebuscados à existência. O mais, são minhas fraquezas, que são também minha beleza.

Acredito ainda no ser humano e em sua suprema promessa. É este meu dom e minha arte. É este meu banquete, sirva-se à vontade.

Regue Azul

Se eu regar o céu
Que fruto que dá
Frutas cadentes
De gosto estelar

Vai chover
Maçãs do amor
Carambolas do mar

Se eu plantar estrela
Que água que rega
Bananas nascentes
Da terra solar

Chuva de chocolate
Tempestade a amar-te
Sons do abacate
Salada de fruta que dá

Se eu regar o céu
Que fruto que dá
Murici buriti araçá
Venha cá já

Planetas sementes
De pequenos príncipes
Arando vulcões
Rosas botões

Supernovas flores
De cosmos sabores
Que fruto que dá

Que fruto que brota
O primor primavera
Que acolhe a colheita

Se eu regar o céu
Que fruto que dá.

Contentalento

O que é hoje?
O hoje é tudo que temos
e quando o futuro chegar
ele será hoje
e ainda será tudo que temos.

O que é hoje?
O hoje é eterno
tudo é o eterno
oceano do divino atemporal
o eterno hoje é tudo que temos.

Se há vida após a vida?
Há sua promessa
e uma esperança
- mas da dádiva divina
não peço por mais do que já tenho.

Se tudo que tenho é isto
ou se é mais que isto,
conquanto esteja na presença
nas mãos amorosas de Deus -
não preciso de mais nada.

Não temo à morte,
mas temo sim
morrer longe da luz.

Conquiste eu o mundo
ou só este meu quintal,
conquanto caminhe com o criador
abraçarei corajoso todo começo e todo fim.

Elogio à Resignação

Cuidado
Com aquilo de que reclamas.

Cuidado,
Pode o problema ser ainda pequeno
Menor bem menor que o seguinte.

Cuida com o porque choras
Ao fazer rolarem tuas lágrimas

Que a poça diminuta
Pode ainda ser afogada por um rio,
E o rio inundar-se em oceano.

Cuidado
Com os discursos do teu lamento,

Cuida confrontar o tormento
Que tua flor pisoteada
Pode ainda ser jardim em chamas.

Antes ama teu revés,
Desnuda a alma em consolo

Antes olha ao que ainda tens
Acaricia o sono sem sonhos
Que não trouxe pesadelos.

Antes canta
Lembra-te da dor mas canta e dança

Canta e dança sem esquecimento,
Evita varrer tua sujeira para dentro.

Antes fica quieto
Alonga as juntas da jornada,
Deixa o passado repousar

Dá água à secura do inverno
Alimenta paciente tua emoção,
Antes tires força da resignação.

Cuidado
Com os porquês de teu pranto

Que a vida é suprema
E supremamente frágil,

Que a vida é potência
E potencialmente vulnerável,

Que o sonho é imenso
E imensamente delicado,

Que a coragem é profunda
E profundamente reversível.

Cuidado
Cuidado com as palavras de desdém,

Que se julgas pouco o que tens
Imagina se perdes tua bússola
E desaparece teu pólo norte.

Panturrilhando

Estava doendo
e enquanto doía
de repente me percebi sofrendo.

Por um instante
breve e imenso
quis que não houvesse a dor

mas então percebi
que ainda era hábil ao sofrer
e o dom que isto compreendia.

Quem não quer sofrer
também não pode querer viver
então entendi como estava apto a ambos.

Pedir pelo fim da dor?
Não.

Pedi força pra encará-la e superá-la
Dei graças pela sensibilidade ainda ativa
Amei o fato de ainda não estar calejado demais.

Pedir por mais dor?
Não.

Pedi por mais vida e sabedoria pra vivê-la
Dor, dores, de parto ou do fim de virgindades
Sei que, vivendo e amando, dor e dores sofrerei.

Estava doendo
e enquanto doía
de repente me percebi vivendo.

Por um instante
breve e imenso
quis que não houvesse a dor

mas então percebi
que ainda era hábil ao sentir
e o dom que isto compreendia.

Da Potente Ducha

Gosto de banhos longos
e beijos lentos.

Todos os tipos de pimentas,
de interromper os seus lamentos.

Gosto do som de um olhar quieto,
dançar na lama debaixo de chuva.

Tirar poesia do sofrimento,
de estender as roupas no varal.

Sentir fome antes de comer,
de uma boa segunda-feira para enlouquecer.

Gosto de frios na barriga
e ardor nos pensamentos,
gosto de longas caminhadas
e duros treinamentos.

Noites de insônia cafeinada,
de escapar da armadilha armada,
gosto do tesão tranquilo
e da cerveja super gelada.

Horizontes largos
e gestos atraentes,
de inventar palavras
e rir com todos os dentes.

Gosto de saber do que não gosto
e também das lições amargas do desgosto.

Gosto do esforço,
do suor,
da muvuca
e da poeira,

e é por isso que,
acima de tudo,
gosto tanto de um banho tão longo.

Mamutes Domados

O poeta é um bicho engraçado
faz da vida o trabalho

usurpa as próprias emoções
por uma posteridade imaginária
que mesmo que um dia ele alcance
ainda para ele não passou de imaginária

O poeta é um bicho sagaz
quando dança

Ah se o poeta dança
se o poeta sabe se calar

ah se o poeta sabe se calar
silenciar sua mente
e dançar!

Quantos arrepios indizíveis e indeléveis
o verdadeiro sublime
o verdadeiro ouro de uma existência doutro modo majoritariamente preenchida da escuridão friorenta

Mas há uma ingratidão nesta percentuação
O Infinito
é imenso

há seu frio
e seu suposto vazio
mas eles repousam nas mãos de Deus

Deus que sei que está lá
Lá que brinco de chamar de lá
pois é aqui é aqui é todo lugar
é em todo lugar e é todo o lugar

O Lugar
que se eu me permitir
sou eu nadando no oceano sem fim de Deus

que se eu for poeta e bailarino cósmico o bastante
se eu for verdadeiro e cheio de emoções o bastante
sei que Ele vai me deixar ser
aquele que nada
braceja se perde e resfolega

nas marés maravilhosas da alegria
a única alegria cabível
a alegria que uma inteligência que encontra a coragem de conversar com Deus

Deus quer ouvir nossa voz
ele já conhece nosso coração
mas nossa voz depende de nós
a voz mais profunda
a voz profunda cheia de emoção
cheia da nossa verdade pequena tão humana tão ignorante

Deus quer ouvir essa voz.

O poeta é um bicho engraçado
que se for bom
não guarda rancor no coração
nem tem medo de quebrar velhas tábuas bolorentas

que se for bom
dança com a mente quieta
se hidrata como se não houvesse
que se você parar pra pensar na verdade não há
e dança mas dança de acordar três dias depois com as panturrilhas ainda lembrando da divina ceia do ritmo

a lealdade
é ouvir o próprio coração
que às vezes deseja o que faz sentido
que às vezes sofre por viajar maionese de azeitonas pretas chilenas
mas que nos dá nossa pequena verdade humanóide
a única verdade que nos cabe
vem do coração

Coração Simbólico
claro sem freios pedagógicos
o coração é o cérebro que é o infinitesimal em cada instante incompreensível
mas daí o poeta perde o compasso e a noção de que há um esforço que todos merecemos fazer

o coração
Coração Simbólico

ele é um esforço
não é um órgão biológico
não é uma signo compensatório
não é um baú de segredos sofridos

ele é toda uma perfeição inominável e tão ai, ai... tão tão possível!

A perfeição
A Perfeição

É tudo que há
Pois que o que há não podia deixar de ser
e sendo assim irretocável inalterável incomunicável em sua irrepreensibilidade
é obviamente perfeito

Mas
se cabe o adjuntivo divertido
Mas a perfeição
A Perfeição
se permite aperfeiçoar

É esse o esforço
o ideal
seu ideal
o ideal de cada um

que você bem sabe o que significa
o que é o seu ideal
o seu eu ideal
que dança
que tem a mente quieta
que faz da vida alguma espécie de poesia

seu eu feliz
disciplinado
cheio de paixão pela vida
cheio de paz e calma na hora do vamover
cheio de amor pelas pequenas coisas do mundo que o fazem tão perfeito

esse ideal
ele está aí
ele é possível...
ai...
é tão tão possível!

E... te digo...
eu já estive lá...
no meu...
certa vez
estive lá
foi lindo
e durou
durou bem

Depois escapuliu
demorou mas fui entender
que estive lá e escorreguei
e a benção é ter hoje essa ciência

pois que posso novamente criar o ideal
o eu perfeito imaginário
O Pefeito Aperfeiçoado
mui mui bem apessoado eu ideal

E sei que ele é possível
e que o dia que eu chegar lá de novo
não vai ser fácil
e nem vai ser pra sempre
porque toda perfeição aperfeiçoada exige constante manutenção
mas quando eu chegar lá
vai ser lindo
e além de feliz
eu vou fazer alguma diferença pra Deus

Deus vai gostar de mim pra valer
Ele vai me dar os maiores presentes
e realizar os sonhos que eu tão pequenino nem nunca imagino imaginar pra mim.

Deixo que Deus sonhe por mim meus sonhos.

E busco meu eu ideal.

O poeta é um bicho engraçado.

Carta para um Eu Futuro

Às vezes eu me lembro, por uma ou por outra razão, algo me faz lembrar. Dela. Ainda dói. Talvez tentei apagar rápido demais, empurrar para longe as lembranças, pela dor que o rompimento trouxe. Mas a memória se mantém, queira ou não.

Comecei odiando o fim. Nosso fim. Odiei ela um tempo também. Depois me odiei, por ter me colocado na situação de amá-la. Me consolaram dizendo que todo amor é válido, que fica marcado em nosso aprendizado. Tentaram. Quem sabe agora eu possa me consolar. Sei que ela não vai voltar. E se ela sente minha falta, ou se um dia vai sentir, se um dia vai me querer de novo, nada disso eu sei. Quem sabe alguma coisa boa tenha ficado, algo do que eu fui tenha sido positivo para ela. Mas não posso ter certeza.

Sei que ela se cansou de mim. Ela nunca realmente quis aquilo como eu quis. Precisei convencê-la a estar perto de mim. Depois de um tempo, numa ou noutra ocasiões, ela parecia me amar, falou isso com todas as letras, ela que nunca expunha assim seus sentimentos. Ao menos não para mim. Quis que ela se desse mal com outros, que sofresse com os próximos, para entender o quão bom eu era. Ou quão bom poderia ter sido, se ela tivesse lutado, se entregado. Mas isso tudo é uma fantasia estúpida. Tudo é o que tem que ser, sem vírgulas que se possa alterar.

Amores vêm e vão. Não tenho problemas com fins ou começos. Gosto deles. Para um lado e para outro, significam liberdades. Liberdade de acariciar ou de procurar. Liberdade para mergulhar na intimidade, ou para garimpar novas escolhas. Amor eterno, se um dia vou vivê-lo, quem sabe. Mas não tenho problemas com começos e fins, enquanto isso. Minha angústia, minha dor, não é perceber que o amor se apagou, que a história terminou. O sofrimento dessa passagem é uma noção de um amor que não esteve realmente lá. De que ela nunca esteve realmente lá. Comigo.

Os beijos, aconteceram. Mas foram apressados, intensos demais, como que empurrados. A paixão, aconteceu. Depois ela me disse que eu fugia para a paixão, enquanto as dificuldades ficavam de lado, sem solução. Eu só achei que estava fazendo amor com quem me amava. Para mim, não era uma fuga, era uma alegria. Mas eu realmente me tornei um chato, aos poucos. Percebi isso claramente. Para ela, tudo estava normal, as coisas que ela me falava, o jeito como me tratava. Mas eu sofria, punhaladas certas, aqui e ali, pouco a pouco me indispunham. Eu fugi da minha própria consciência, da percepção de que estava sendo destratado.

Ainda dói. Às vezes algo me faz lembrar dela. De um jeito ou de outro, vou me lembrar dela. Mas quero guardar algo bom disso, tornar esse veneno que ainda me corrói, em bálsamo. Foi bonito, teve seus momentos. Eu estava lá, ao menos. Eu tentei. Fiz tudo que pude, lutei pela conexão. Mas não houve recíproca. E enquanto eu tentava desenvolver uma proximidade, ela parecia fazer de tudo para se manter distante. Ela nunca tirou uma foto de nós dois. Nunca vestiu aquele vestido que eu trouxe de presente de viagem. Nós nunca acordamos juntos, nunca nos beijamos após uma noite de sono lado a lado. Pressa e pressão. Não havia solução.

Agora ela está longe. Sei que ela vai ser feliz, seguir seu caminho. Sei que ela vai fazer coisas que vão me machucar, se um dia eu ficar sabendo. Ela já está fazendo isso, sei que está. E eu previ que faria, seja como for. Tudo que preciso é olhar para a situação de uma maneira positiva, entender que não podia fazer nada além do que fiz. Ao menos, aprendi que sei amar, de mais um jeito.

Aprendi que meu amor é forte. Que sei cuidar de uma mulher. Que posso dar aquilo de que ela precisa. Se for de mim que ela quiser receber, enfim. É essa a lição. Sentir a recíproca. Dos gestos, da entrega, do compromisso, da curiosidade. Sentir que existe uma escolha consciente, de boa vontade. Poder enxergar com clareza que a conexão evolui com a soma das intenções, com a combinação das decisões.

Já não importa tanto o que ela nunca fez. A água vai me salvar, a água sempre salva. Pelo suor, pelas lágrimas, pela saliva que ri, que fala e que cala. Algo bom vai ficar disso tudo. E eu vou conseguir recomeçar, mais uma vez, recomeçar.

Ode Resolucionária

Mãos fortes
Doce toque

Visão clara
Largos horizontes

Longos passos
Caminho reto

Fontes puras
Sede leal

Amores tranquilos
Paixões dedicadas

Pulsos firmes
Gestos sutis

Ceias fartas
Apetite lúcido

Loucuras ágeis
Preces profundas

Coração sensível
Pensamentos amplos

Lições concretas
Mestres prudentes

Lutas atentas
Paz criativa

Danças precisas
Confusões musicais

Cores absurdas
Foco constante

Desafios afiados
Sabedoria paciente

Sonhos oceânicos
Asas libertas

Desejos sensatos
Abraços leves

Beijos ardentes
Sabores complexos

Belas paisagens
Missões sagradas

Honras secretas
Humilde virtude

Tempo extenso
Trabalho digno

Sacrifícios úteis
Prazeres abstratos

Cautos instintos
Hábeis arbítrios

Relíquias cabíveis
Raros ventos

Contentes contatos
Veros perdões

Questões colossais
Voz sincera

Bençãos esmeras
Repouso capaz

Apelos fragrantes
Curiosidades genuínas

Ausências sólidas
Obras máximas

Sintonias celestes
Ritmos mundanos

Apegos elevados
Tréguas tônicas

Destros tropeços
Tristezas mínimas

Influências fluentes
Tenazes amizades

Incontáveis alegrias
E um único Deus acima de tudo.

Hidrogravuras

Dê valor ao amor
Ao amor que temos
Ao amor que vem de dentro

Dê valor ao amor
Da súbita visita
Do desabafo desatado

Ao amor que temos
Que concentramos para dar
Que nos superamos para saborear

Ao amor que há em nós
Na graça dos atos corajosos
Na palavra que ainda não foi dita

Ao amor que vem de dentro
Que faz das correrias poesia
Que enlouquece sem querer voltar

Dê valor ao tempo
Dos longos anos em instantes
Do frio na barriga antes do beijo

Ao mundo que nos cerca
Pulso do coração de céus estrelados
Força da geração de sabedorias inconstantes

À vida que nos nutre
Que faz vigor da desavença
Que aquece o frio da descrença

-

Meu amor
É de dar massagens
Cozinhar tortas de sobremesa

Meu amor
Tem o dom da fidelidade
Largos passos da mente silente

Meu amor
É escola de abraços
Servir sempre o copo d'água

Meu amor
Tem a lábia da amizade
Deixa gostinho de quero mais

-

Onde há fome de lealdade
Meus leões aprendem a saudade

Onde o sonho se faz desperto
Meu coração de águia bem aberto

Onde a fúria se faz flor
Promessa de fruto do ardor

Onde a morte é mistério
E viver a beleza incompreensível

-

Meu amor
É a coragem de me entregar

Saber que há uma mão a amparar
Seio divino que amamenta o filho pródigo

Meu amor
É a fraqueza de ser tão humano

Descobrir a força no escuro
Costurar os retalhos de cada erro

Meu amor
É uma vertigem vigiada

Vôo inédito do elefante
Polvos voadores dançando balé

Meu amor é uma língua abençoada
Cantando a vontade de estilhaçar desafios

É um jogo assanhado de sons
Falando tudo mesmo quando calado

Meu amor é água dura em tenra rocha
É uma boca cheia para implorar perdão

-

Há uma liberdade em sorrir
E pesados grilhões fazem a liberdade

Há uma alegria em tentar
E um terrível desconsolo se esconde na vitória.

Life: God's Dance

            "This is my book of dreams. Here I can dream, awake, only to wake up to the ultimate dream."

            Amar, é como cuidar de uma fogueira. Deus é a vida que vê toda vida começar e terminar, como quem cuida duma fogueira, dando-lhe a vida inicial. Em velas, gravetos menores, a técnica que for - é necessária alguma técnica ao princípio do fogo. Depois alimenta-se-lhe de gravetos, paus, toda sorte de lenha - isto somos nós - a lenha de Deus.
            Fogueira que brilhe tem seu coração liberto, um vazio tão preenchido de calor, são os pulmões que respiram, o vão divino onde a transição se dá. Ali não pode haver madeira. Isto é como criar um filho. Dá-se-lhe o soprão inicial, suas primícias. Daí em diante, é administrar a nutrição, saber escolher os galhos secos certos, aquilo que estale a arda da maneira ideal. Antes e depois, há seus momentos, em que um tronco precisa engrenar, pode até parecer que o fogo perde momentum - é ilusão - mantenha as brasas alertas, os sorrisos acessíveis, mantenha as fontes de água e vinho, o infante toma tentos, a fogueira ganha seu braseiro.
            O artista é uma brasa divina que se expõe à chuva, resiste à tempestade - e logo vem-lhe Deus soprar a alma, dá-lhe lenha e a chama vibra outra vez.

            "This is my book of dreams. This here is the life of me. In where the dream of day meets the waken breath of faith."

            Há um grupo de momentos - a Ponte - é uma sequência de compassos na canção onde tudo respira, se reagrupa. Arte é jorrar o hálito e antes cedo que tarde cumulá-lo como em represa - pra daí, tromba dágua, arrasar com todas as barragens, educar a alma da carapaça, dar-lhe lágrimas, fé, dança e fadiga.
            Mas Deus quer mais que tudo a alegria de partilhar o momento - isto que viemos a chamar aqui e agora, o tudo e o nada que nossas mãos inventam agarrar. Há alegria segredada entre tudo que vive, há alegria em cada instante indivisível, ritmo e música em cada fantasia de silêncio, na nuance de cada cor, há riso recluso mesmo na dor.
            Deus sopra sua fogueira, vê os gravetos quebrarem e ruírem, a fogueira queima, a fumaça sobe aos céus, há esperança na noite do ser, o mel da perfeição sussurra na umidade que evapora sobre o verde do jardim.

            "All is innocence and shall forever be - for though we may learn the mystery and solve it, we can't ever control the hand that draws the world."

SONHOS FÁTUOS - O que é o invisível?

Há quantos dias não comias
Quantos anos sem companhias

Em conversas apenas com as vozes estranhas
Que brotam corrosivas de tuas entranhas

Ao passeio com tuas nódoas largado
Como embrulho de lanche amassado

Invisível em teu paradoxo de palpabilidade
Que terá outrora vivido na flor de tua idade

Que foste antes da tua exaustão
Deste teu odor canhestro e malsão

Foste quem sabe rico
Um destemido ou um impudico?

Sei que nalgum mundo eu sou tu
A roer os ossos dum cadáver cru

Nalguma vida pequei como pecaste
Em tal futuro revira-se o contraste

Eu com tinta e papel em punho
Pela alva inocência testemunho

Vejo em ti a mãe de todas as fomes
A sede das almas que perderam todos os nomes

Sonhas em plena luz ao relento
Sonhas talvez uma paz de teu rebento?

E se sonhas bem compreendo
O despertar desfaz qualquer remendo

Preferirás tu certamente a paisagem imaginária
A qualquer sombra lúcida da agonia intermediária

Quem sabe o que é para ti viver
Se será benção ou castigo morrer

Foste um motorista de caminhão
Desbravando as rotas remotas do Maranhão?

Quem te ensinou a tirar da pedra fumaça
A penhorar teus vestígios de fé pela cachaça?

Haverá qualquer esperança em tua vida
Ou apenas dormes e sonhas a derradeira partida?

Terás amado louca e perdidamente
Bebido cores do orvalhado sol nascente?

Viveste a promessa de uma carreira
Saboreaste um dia a ceia sem fronteira?

Tiveste filhos pródigos nos vãos de tua sina
Pariste varões prodígios hoje órfãos de disciplina?

Haverá destro pai aos prantos
Calculando o saldo de teus desencantos?

Quantas mazelas suportaste
Antes de abandonar-te como um traste?

Arrependeste-te de teu pior vício
Ou fizeste da calçada e andrajos um ofício?

Foste um dia escriba com cacife
Antes de encalhar tua nau em anônimo recife?

Que calçados ampararam estes pés
Que seda te acariciou prévia ao último revés?

Foste um dia poeta de grandes ambições
A questionar quem teve do existir só os grilhões?

Respostas jazem no amanhã desconhecido
Quem sabe se terão mais voz que um rouco gemido

Nossas vidas na eternidade se entrecruzam
Além muito além dos interrogativos que abusam

Que perturbam teus sonhos talvez angelicais
Na esquina esquecida dos absolutos marginais.


Berro de Birra

Não se arrependa
por seu amor ser maior que a cumbuca

Não pragueje
contra quem não te amou o bastante
que é mais provável você ser castigado
por ter amado demais

Há amores que deixam saudades
que deixam as lembranças de tudo que passou
há outros porém que deixam um vácuo
sensação de que estava morto antes de nascer

Não se amargure
nem deixe a raiva dominar o discurso

Deus acima de tudo e todos
conhece e tece seus caminhos
Deus amigo e mestre amado
deixe que Ele desenhe seu curso.

ela...
não foi ela quem destruiu minha alma...

Fui eu mesmo quem me destroçou
por deixar em mãos aprendizes o bisturi
por entregar as tarefas mais importantes
à menina que da vida ainda tão pouco sabia

Mas...
mas o mundo segue a girar
a vida ainda pulsa se agita no peito aberto
as feridas são troféus do espírito
que um dia serão cicatrizes do guerreiro
e o mundo segue a bailar

Ironias do divino
o bálsamo da paixão é nova paixão
a cura do amor ferido é novo amor
o remédio para a mulher é ainda a mulher

Que há muitas flores no jardim
e se esta murcha ou se recolhe
ainda há um arco-íris de esperança

Há carinho e ternura na jornada
e se o tropeço lascou-lhe um dedo
ainda há o afeto em riachos do perdão.

Pedestral

É mordendo a fruta verde
Que se entende o sabor da madura
É provando um pouco do veneno
Que se conhece a doçura da cura

Apreciar o momento
Amar a dança do vento
Destilar a ira do tormento
Saber que só a fé faz o alento -
É esta a suprema arte
A força de toda filosofia

O sentimento é o compasso
Apontando ao norte da evolução
Ao leste o sol é firmamento
Colorindo os percalços da razão

Raro aquele que se dá uma chance
Oportunidade ao experimento
Rara é a alma que faz seu lance
Apostando o sangue na missão
Bela a vida que inspira entrega
Fazendo degraus e pés à trégua

Todos os Césares e Augustos
Filhos pródigos em seus abusos
Todos os santos e beberrões
Dos tronos oblíquos que me perdoem

A vida não está no peixe
Nem em se saber pescar
A alegria ultrapassa a vitória
O mito é bem mais que ganhar

Comediantes comedidos me perdoem
Toda pompa do austero manobrista
Náufragos da sorte e afogados
Perdoem-me os por si mal amados

A vida é mais que um roer de unhas
Mais bem mais que fisgar as rinhas
O mundo é vasto e ainda inexplorado
A felicidade é sempre nau sem lastro
É beber a chuva do esquecimento
Chorar lúcidas lágrimas de criança

Raro o homem que respira
E ainda mais raro o que transborda
Rara a alma que sonha
E mais rara aquela que acredita

A vida aguarda ao ponto de ônibus
De capuz absorta em sua poesia
A vida vai amando o dia de hoje
O ontem e o amanhã são sua lisonja
A vida sabe olhar o que lhe afronta
Tira mel da pedra que desaponta

É sofrendo o fim até o fim
Que se começa um recomeço
É esfomeado e sem vintém
Que se vê de cada qual o certo preço

Deixar o quitute derreter na boca
Sambar loucamente sobre a loucura
Alongar-se onde tudo é contração
Ter-se a si na palma da mão -
É esta a suprema arte
O segredo de toda magia.

MANIFESTO TRANSMODERNISTA

            Nunca vi brinquedo mais lindo que um catavento. O poeta é como um catavento, coisa que só faz alegria em girar na captura daquilo mais intangível, quase abstrato. Feliz a criança que encontra riso num catavento, e feliz o poeta que se aventa e faz rodopiar seu verso.
            Perdi tudo mas não perdi a fé. Foi aí que desisti de desistir. O jardim. As borboletas, os gafanhotinhos, os passarinhos tantos os azuis os verdes os amarelos que se sentem em casa aqui com os mamoeiros que deixo todos deles. Aqueles besouros, todas as coisas de regar, a grama a pitangueira que nunca deu fruto, o que seria deles todos se eu desisto? Até aquela mosca feia que faz a gente se mexer na moleza do domingo estirado sob o sol. Que seria deles?
            Existe uma hora no caminho, você olha, a ponte está logo ali, é uma passarela bonita Cecílio Mataraso (sic), dali debaixo você sabe porque já conhece, quando chegar ali em cima dá pra ver mil carros, prédios, monumentos distantes, a gente pode espiar o mundo passar e é bonito. Vai chegando vem subindo, quando estamos ali em cima dela, só pensar que é bonito não adianta, tem que estancar. É isso que é viver. Precisa estancar o passo, se debruçar com alegria e paciência, vão passando meio esquiando aquele montaréu de automóveis, do outro lado da passarela vê-se já o arvoredo todo do grande parque. No domingo de sol, já sabemos, vai ter muita gente e é bonito pra quem usa os olhos pra ver. Com calma devagar, ali em cima, a gente espera, espera a cabeça sossegar de brincar com os detalhes. Respira fundo. Solta a vista. Logo a coisa ganha um fluxo muito próprio, pronto você viu a cena. Ela está passando. Tem mil detalhes de brincar. Cada carro uma vida um jeito uns com pressa outros trabalhando na penitência, tem os alienados os esquecidos, os que vão tão sozinhos mesmo acompanhados. Mas isso não conta. Você espera a cabeça sossegar e mostrar o jeito que tudo anda juntinho, ali está a vida. Você vai ficar triste, abestado quem sabe tenha medo, logo se alegra se deslumbra se treslumbra. Numa sombra do caminho um rapaz tão humilde sentado meio na calçada comia sua respeitosa refeição instantânea. Ali estava a vida, mas é falta de educação parar pra ficar reparando desse jeito. De volta lá na passarela, você riu você chorou, daí tudo bem, agora vamos passear. Vamos beber água de graça nos bebedouros e ver as meninas bonitas deslizando em seus patins. Muitos não falam coisa com coisa, um menininho vai tentando chamar atenção da mãe que olha pro telefone portátil como se o pai estivesse ali na forca. O menino, pobrezinho, tão bonito, ela nem vê o mistério de criança nele, que pode amar um catavento. Você vai dando bom dia pros que não estão ali pra regatear. Minha estatística contou que nove em cada dez são respondidos. O povo vai passando, muitos correm, parecem lutar contra si mesmos, fugindo da feiúra de um corpo flácido. Vivem pouco e o coração que aguente. Tem uns que vão olhando as paragens das águas, os tremeluzires, bolhinhas de sabão no meio dos balões coloridos, os patos e gansos mergulhando. Desses eu gosto mais, mas quem sou eu pra dizer o que acho dos outros. Você vai sentindo, não pode flertar que perde a concentração. Você quer ver a vida, e ela é tudo isso, esse montão de coisas que a gente desconsidera porque ficamos caçando essa ou aquela coisa. Imagina, trocar todas as coisas por uma ou duas que já logo cansamos e queremos melhor. O sol vai crestando a pele. A gente chega bem pertinho da estátua do Pedro Álvares, nossa como é imensa. Pensar que um homem sozinho martelou tudo aquilo. De longe você não sabe como é grande. E só quem é muito curioso vai descobrir aquele enxame de abelhinhas sem ferrão alojado ali ao pé da capa suntuosa do Cabral. Eita português que escorre mel, e o mel é o Brasil que inventaram que ele descobriu.
            A poesia está em todo lugar. Ela é a vida, que se a gente capturar enquanto respira, pronto, isso é boa poesia. Tudo bem o garrancho o poeta se não decifrar depois reinventa. Muitas árvores. Eu gosto de ficar de pontacabeça naquelas barras de ferro, umas meninas queriam fazer igual as outras chacoteavam. Pra mim é um alongamento ótimo, fazer o quê. Tantos com fones de ouvido, será que já ouviram a conversa que têm consigo mesmos? Tantos cachorros cachorrões cachorrinhos arrastados como mobília pela sala vazia, será que eles entendem o porquê de tal e qual lugar ser bom ou não pra fazer as necessidades? Uma hora a gente vai voltando, você chorou você sorriu, tinha um monte de surpresinhas que mais vale você garimpar por conta no seu próprio domingo espraiado.
            A gente vem voltando, eu gosto mesmo daquela passarela. Lá estou de novo esperando compreender o mundo só de olhar. Tantas pistas tantas faixas tantas corridas. O mundo humano a cruzar pra cá e pra lá por debaixo da gente naquela imensa avenida. Novena de asfalto. Uma marreta pinga potente fazendo distração e suadouro certamente no obral. Podia ser um garimpo de mistérios. Mas isso já é invenção de poeta no labirinto tão concreto.
            E então. Então. Lá está ela. A vida, bem ali. Por cima da balbúrdia de buzinas multas e palavrões, em meia dúzia de flapflaps o passarinho atravessou tudo. A Brasil, a Treze de Maio, a Ibirapuera e sei lá qual mais, aquele emaranhado todo. Pimba. Assim simples e sutil. Flapflap, por cima de tudo, atravessou de boa que só a parafernália toda. Isso era um bom poeta. Ele ia voar por cima de tudo tranquilo pra chegar do outro lado, sem risco algum de atropelamento, pra se instalar bem de certo nalgum galho maciço e aconchegante que realmente daquela banda da passarela está cheio.
            Tinha flores roxas e rosas no caminho. Tinha amores vencidos e perdidos no caminho. Tinha um senhor dando graças por encontrar uma blusa boa jogada na rua. De dia está bonito mas à noite vai ser frio, seu Isaque. Quinhentos quilômetros por hora e eles não vão a lugar nenhum. A vida estava ali e ninguém viu. Como um crime sem testemunhas pra depor a favor. Ou contra. Já me confundi. A vida é intensa. É pura poesia. Mas só se você parar pra olhar. E esperar os detalhes virarem uma alma líquida que o coração beberica. Como os passarinhos do mamoeiro. Só se você deixar o vento rodopiar suas abas de catavento. Se não tiver vento basta correr alegre que dá no mesmo.
            Fico com a solução do passarinho por sobre as avenidas. Que a vida, se apaga. O amor, se apaga. Mas a arte, sobrevive.

Desabandono

Sequestrado por minha alma
O corpo é agora refém
Daquilo por detrás do detrás de mim

Aquilo que vê com olhos pralém do rosto
Aquilo que sabe dançar e quicar isento das gravidades

O que não ouve o som
Mas as totalidades musicais
O que não o sente o cheiro
Mas captura o flagrante fragrante
Que não entende o sentimento
Nem se importa em senão sentir

Que é pra alma o entender?
Que é senão sentir com as pontas dos pelos e cabelos?
Que é a razão senão o que sente o cerebelo?

 Sequestrado por minha alma
O coração agora cativo da arte esmera
Amando em vôo sucinto acima dos bueiros

Subjugado pelo supremo silêncio de mim
Aquilo eterno que não desabafa nem desalenta
Aquilo sóbrio e sórdido que beija a tormenta

Transparência cor e profundeza me ajeitam
Toda canina lealdade vibra ao pé de mim
Renasce a paixão pela folha em branco

Mãos que pela superfície alcançam o âmago de tudo e nada
Hálito dileto soprando bálsamos sutis no exposto
Despertar alegre do orvalho que o mundo renova a cada manhã

Aquilo que respira ritmo e ginga antes do ar
Aquilo que abraça as estrelas com braços abertos

Que investiga o pulso do impulso
Sem ceder à densa repulsa
Que não troca por troças a trova
Nem morre de sede ao deserto
O que não rejeita os espinhos
E faz da dor doce oceano

Que é viver para a alma?
Que é senão se erguer onde tudo faz dobrar?
Que é o viver pra alma senão sonhar o sol na meia-noite absoluta?

Sequestro divino
A alma cheia de graça
Não negocia resgate
Nem ata os punhos do prisioneiro

Sequestro sagrado
A alma criminosa
Não contesta a liberdade
Nem esconde as chaves do carcereiro.

DESTINO: MIADO

Numa esquina congestionada
Dum cruzamento crucial
À Avenida Brasil

Travado ao trânsito
Sob sol de meio-dia
Avistou-o - Lá estava

Folgado livre
Sem brio nem culpa
Em passinhos delicados

Vagueando pelo cimento
Das vagas dum estacionamento
Um belo bem cuidado gato vira-lata

Desconhecendo o tráfego
As horas e seus lamentos
O bichano pairava tateando

Angelical fenômeno
Satisfeitíssimo por certo
De si da vida e do mundo

Em sua pelugem maltada
De expressivos bege e creme
Lânguido ignorava o poeta

Ah o poeta!
Que num minuto de semáforo
Bem notou tamanha felina alegria

Lá estava - Contemplava-o
Lá estavam das luzes os mistérios
Tempo espaço sabor e liberdade

Naquele gato se encerravam
As soluções todas da sina humana
Altos saltos sobre muros

Caçar besouros passarinhos
Destreza força garras estendidas
O chamego de moças desentendidas

Capôs abertos para sempre
Estradas largas fontes calmas
Ossadas sem fim ao fio dos dentes

Mas o poeta - Ah o poeta!
Confrontou-o com o amor
Com o valor das responsabilidades

Que eram agora a vileza e a nobreza
Que eram a música e as letras
Todo o certo e errado dos homens?

Das filosofias estacionadas
De tantas almas congeladas
Que restara então da vontade?

O poeta aguardava respostas
O bichano porém virou-lhe as costas
Com o mais santo desdém que havia

Honra moral virtude o futuro inteiro
Suspensos balouçando aos ventos
Urravam silentes por uma resolução

Mas era enfim tarde demais
Retiniam as buzinas impacientes
O farol abrira há um instante-
E a perfeição perdida
Ronronava já distante.

Descalçado

Cada palavra negativa
é um soprão
que ergue um tufo de areia

Cada sentença aquieta
ou instiga
a tempestade no deserto

Furacão de areia que cada um
consigo carrega
impedindo os olhos de se abrirem para a luz.

Miralta

Chore na chuva
pra que as lágrimas sejam
             dela gotas.

Ria sob o sol
pra que os risos sejam
             dele raios.

Ame na praia
pra que as carícias sejam
             dela grãos.

Voe sobre os mares
pra que as alegrias sejam
             deles ondas.

Ode à Amada

O dom
de se ser o que é

sem limites ou medo
contido só pelas fronteiras da humildade.

A alegria
de ponderar o que vem

sem folgas ou lasseios
reservado apenas nas noções da irmandade.

A vitória
de alcançar a luz de cada dia

sem correntes ou fardos
obrigado somente às ordens da respiração.

A liberdade
de cantar com o coração

sem berros ou gaguejos
obediente senão à harmonia dos solfejos.

Uma amizade que desafia
paixão provocante revolvendo terra virgem

Um sonho que inicia
despertar de um infinito que se expandia.

A força do silêncio
valsando nas ondas de um mar perfeito

O sabor do mistério
degustado na delicadeza de uma intimidade
- Ah! nobre aparição, sacrossanta rosidade!

Deste-me teus olhos e teu olhar
a atenção e os ouvidos a ressoar

Deste-me a destreza de visões
a pureza e a doçura de opiniões,

Um novo eu
todo novo
transbordando de uma sintonia cálida

Um novo céu
todo novo
colorido na magia de um singelo toque
- Ah! santa revelação, musa desvelada!

Deste tua insegurança
tua fome e tua dor

Deste tudo
tua paz e teu amor
desabrochando em flor,
e era apenas o começo.

Era apenas um começo
que, no entanto, valia já mil vidas.

Verdes Céus

Uma linda alma
transborda pelos olhos
e explode no sorriso.

Cada instante é um começo
pra quem vence o medo do fim,
Cada pulso é uma vida
no coração de quem suspira.

Te ver é te querer
certo como o dia vai nascer,
na aurora de um beijo
no poente de um bocejo -
Te ter é retroceder
ao instante primeiro da inocência.

Sonhos voam com asas de luz
sobre oceanos de paixão,
Lá onde as filosofias se calam
no leito profundo de uma benção
doces tempestades nos acalmam
carícias de relâmpagos e trovões.

Certo como o fogo vai queimar
de ventos e podas se nutrir
Certo como estrela vai surgir
seu destino de alegrias a iluminar.

Até que o dia seja noite
e a noite seja dia
Até que o mar se torne céu
e o céu se faça inundar -
Então e além sei
que estarei a te amar.

Pois que
uma linda alma
transborda pelos olhos
e explode em teu sorriso.

ESTÓRICO