São Afrodísio

Quanta sorte tive na vida
De conhecer o profundo significado do aloha
Deveras
Quanta sorte tive na vida
De morrer de tesão pelo belo e viver um celibato às avessas que é um perfeito desentendimento do que seja o celibato.

Os dados rolaram a meu favor
E inclusive quando fui à bancarrôta
Quando vi o duplo-zero na roleta afanar de mim as economias duma vida toda
Os dados rolavam a meu favor.

Me fiz cego certa vez
Por força duma idéia fixa
Por neurose de crer que as coisas do mundo e do cosmos haviam nascido pra uma tal finalidade pré-determinada
Aliás mui pior que simplesmente pré-determinada
Pra uma finalidade infinitamente agradável e satisfatória
E me fiz cego e crente
Inventei um Deus sem precedentes
Que me acolhia como o filho favorito
Tão longe voaram minha presunção e minha ignomínia
Que me afirmei irresoluto O Justiceiro
O Redentor
O de lenço marcado à lapela
Que havia de instaurar o reinado dos reinados
Que havia de liderar os exércitos celestes na última grande guerra entre O Amor e A Besta.

Mas mesmo assim
Afogado numa alienação absurdamente ultrajante
Os dados rolavam a meu favor
Às vezes ainda sinto algo como uma ânsia de compreensão infalível
Esta angústia degenerada que sugere que as teias de coincidências que elaboro em minhas rústicas utopias sejam realmente obra satírica dum onipotente onisciente infinitamente perverso e entediado
Mas a violência da lucidez me remete sempre ao banal
Graças aos bons céus
E retenho novamente em minha organicidade toda incerteza e abnegação de absolutismos
Saio vitorioso enfim
Apesar de completamente desprovido do senso de plenitude cifrado pela fé cega.

Digladio comigo mesmo em prol duma clareza de sentidos
Dum silêncio incorruptível
Não que eu queira estar eternamente calado mui pelo contrário até
Mas mesmo meus discursos mais inflamados são pra mim silêncio intransponível
Quando vivo das entranhas da Terra
Claro que o silêncio não passa dum silogismo anacrônico circular ou elíptico ou enfim
Mas o controle sobre o fluxo intermitente das sinapses e das mitocôndrias
O poder de conduzir o pensamento sem o uso de palavras de narrativas
É algo bem valioso e que me apraz e convém cunhar de silêncio
Isto só pra me fazer entender
Claro mas completamente confusamente.

Que importa!
Já dizia o sábio persa
Que importa eu e que importa você!

E depois de cruzada a ponte
Depois de deslizar pelo arco-íris até mergulhar no pote de ouro
As pequeninas vinganças secretas e inconscientes ainda me assombram
E não quero me permitir repugnar-me comigo mesmo por razão de prepotências inúteis
Não quero viver uma vida de arte e criação que seja meramente um despropósito intransigente mascarado de grandiloquência
Aliás assim e assado por vezes me sinto ventríloquo de mim mesmo
Ou mestre do fantoche de mim mesmo
E por mais que o teatro faça sentido e expugne a melancolia
Quero ser ator apenas para superar o ator.

Ainda há muitas casas a edificar!
Também dizia o sábio persa
E em minha pequenez me dei conta do trabalho de formiga que é a evolução da consciência.

Não que não ache que possa ajudar a fulano ou siclano
Me transvestindo de professor e profeta
Mas já a própria lição me parece irrelevante no que tento dar pompas de categoria imperativa ao texto.

Minha evolução serve a mim mesmo
Talvez
E Deus assim queira
Sirva a filhos meus
E ou também a amigos e inimigos
Os melhores são sempre os dois ao mesmo tempo.

Mas não que sirva a qualquer um por ser algo de valor a eles
E sim somente por ser algo de valor a mim mesmo
Então talvez faça-se ensinada uma lição de hierarquização de vontades e desejos
Não como a apresentação dum organograma de valores e morais da estória
Ao menos não somente como isto
Mas como a ilustração cristalina duma superação de si
Uma fotografia indesejada dum campo de guerra demasiado ímpio.

Tudo passa tão rápido
Ah voa com o tempo
Como beija-flôr estuporado em marcha-ré
O tempo
Esta coisa quase indecifrável
Indefinível
Mas tão irremediavelmente inegável
Tão obtusamente inerente e odiosamente inescapável.

E então me sinto redentor
De súbito
Por ter aprendido a aceitar o passado exatamente como seja
Por ter realmente aprendido a amar o inevitável
E a pulverizar toda discórdia de meu coração com um bom trago de abismo
Por ter descoberto a maravilha da linguagem solar
A gramática cigana e mutante de nossos risos e sorrisos.

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ESTÓRICO