Desfalques

às vezes quase odeio à Vida
e percebo a impossibilidade de tal sentimento -
no máximo odeio a mim mesmo e a tudo em torno que irreversivelmente considero parte de mim

às vezes me afasto da alegria
como uma vingança estúpida contra aqueles que desejam minha ruína -
mesmo os que a desejam imaginando me protegerem

às vezes em afeto exagerado me pergunto o valor das coisas
quanto vale eu estar aqui colocando em termos minha essência em trânsito
quanto vale eu deitar ao branco minha honestidade
quanto vale tudo que já consumi os comes e bebes a droga a família a nação
quanto vale eu ter nascido e saber me perguntar o que quero de mim e do mundo
quanto vale eu me aprisionar em tais questões horrificantemente depressivas

e então minha doença se expurga em ódio macio e solene
e sinto meu fluxo vital com familiaridade e prazer
e então já os antigos hábitos degenerados dos bastardos da terra se me afiguram como brincadeiras de criança que terminaram em atropelamento

o mundo subitamente parece minúsculo
as distâncias se resumem a meros espasmos de inconcordância volátil
meu medo se condensa numa bolota de remorso em que digladio com o nada como numa última expiração dum afogamento

e sinto luz digital percorrer minhas veias
meus poros tremeluzem silentes um arrepio sutil e avassalador
e são inegáveis a soberania da beleza a harmonia da natureza

ao menos piscar os olhos me é um ato mecânico de mera lubrificação ocular
não um abandonar-me a mim em escuridão
nem um restringir-me à interiorização em prolixidade amarga
nem um fingir-me espiritualmente inócuo e superior à existência toda logo antes da piscadela

ainda há musas a degustar
ainda há sol em que se escaldar
ainda há fauna e flora
ainda há o tudo que inclui a mim
e o outro tudo que não sei bem o que seja
quem sabe talvez mesmo o nada haja - apesar de em certa e inescapável inação

vou corromper a dúvida
estuprá-la vertiginosamente
e sucumbir divinamente caso descubra o revés da intuição soterrada

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ESTÓRICO