Apnéia

há-de sempre nos faltar algo que não possamos bem saber o que seja

e o fruto persegue um açúcar secreto raízes afora trevas adentro

como a necessidade de mais vida num coração vagabundo

ou olhar-se ao espelho curioso e descobrir-se insaciável

a vontade de mais sempre mais

o transbordar de num-sei-que do cálice de nosso amor

dores e conquistas que preencham o livro em branco de nosso futuro

eu poderia morrer hoje

ainda posso afinal

e iria grato em veneração

como um mistério eterno

irretocável

iria como a águia senil suicida

ou a libélula agarrada em pleno vôo pelo peixe saltador

sem remorso nem culpa

sem dúvidas nem conflitos

iria como vai o rio em seu curso

desaguando numa lagoa ou ao mar

se elevando como chuva e abraçando o verde como orvalho

dando força ao moinho no córrego

inspirando confiança à construção da ponte que liga dali àqui

e então me percebo como mera ilustração cognitiva

um emaranhado de sol e cristal

em fusão profusa

infinitesimal

ai, tão densa espiral

em jazz e samba e rock

em metais extremistas ou em jongos fatalistas

em marakadãbis e em mantras

pura valsa ao vento

meditando desleixos em prosa versada

agregando anseios como imenso furacão

redemunho destroçando os fantasmas que nos habitam

preciso me ultrapassar

não há hoje comum

preciso ir além de mim

cantar vida que justifique a vida

busco um olhar purificador

no silêncio de meu templo

templo vivo pulsante cujas muralhas são uma pele meio mole meio dura

templo organismo d'eu cuja gente são sangue e sangue correndo pelas veias

desacelero

assim hei de ultrapassar-me

a eternidade se arrasta

mais lenta que a lentidão mais lenta

estática e extática

silogizando contratempos

contrapontuadamente

dando sempre a outra face

e incansável

infindas faces e máscaras

infindas cores e sons

um mar de benevolência cruelíssima

tornando crú o leal

eu de carne crua

vou me assando ao sol

quero o charque de mim

noutra parte sou outra coisa

e de instante em instante me desconheço

inevitável

uma pedra inerte

dando um berro invisível

tocando todos os cantos de tudo com hastes de loucura

preciso superar-me

fazer deste intenso agorinha tão valioso quanto ele realmente é

e penso em ti leitor

penso em como nunca hei de saber de meu sucesso

se te arranquei lágrimas ou gargalhadas

se te fiz mais furioso ou sensual

se te ensinei da elegância e da força

me pergunto: que te importa o autor?

escrevo por mim como tu lês por ti

e então o que nos une? que te importa o que sinto?

quem sabe um testemunho

o relatório duma ânsia

o conluio de infortúnios desmembrado em razão e prudência

será que satisfaz? será que alimenta?

de que tens fome, leitor?

será do mel que escorre de nossa emoção ao centro do mundo e então ao sol e a todos os sóis?

ou tens fome de solilóquio? fome de serdes ouvido, assim como tenho fome de escravizar?

certa vez me dei conta de que a grande loucura do homem é sua lógica

uma frágil construção intracrânio se debatendo por definir o indefinível através de abreviações e lastimosas conformidades

quisera um leitor ardiloso

vil e imundo

tal qual o lobisomem em sua lua cheia

tal qual o minotauro em sua vulnerabilidade

quisera tornar-te de pedra

desenhar olhos de Medusa num verso

e abandonar-lhe incauto ao vulcão do real

ultrapasso-me?

me vejo num passado distante e noutro logo aqui

enxergo minhas primevas lembranças

a primeira vez na valsa do oceano

os primeiros pesadelos duma infância disforme

e creio não ser nada disso

que afinal cá estou, outro

quase plenamente alheio a mim

uma continuação imprevista

bolhas de sabão a saltitar ventre adentro

lembro de sonhos perfeitos em que era outro

ou melhor, o mesmo

mas em outra esfera, outra infinitude

como vivesse milênios numa soneca

desovando realidades inconcebíveis no relaxamento da pragmática

concretização de sonhos inócuos em pura extravagância ignóbil

lembro de sonhos perfeitos em que era o mesmo

porém outro

vidas inteiras que vivi não sei se milênios atrás ou afrente

e me vejo vivendo novamente esta vida

como buscasse realizar o definitivo sonho da vigília

como canalizasse infinita sagacidade na mais simples entrega

um abandono de si em infinito apego a si

contração insolente destrinchando toda volúpia juvenil

uma ampulheta bailante

atemporalizações

que é de mim então?

que hei de ser em seguida?

se não aquela criança nem o outro de sonhos de vidas paralelas

que hei de ser?

que sou?

porém não finjo não ser

repreendo em mim a desconfiança pra com o inalienável

e me dou conta da sabatina de tais termos

libertinagem exata em gélida honestidade

talvez alguma hipocrisia também

afim de segurar-lhe a atenção

afim de transmitir-lhe, caro leitor, uma extrema unção

que não sei bem qual seja

um dom indecifrável que impele à fogueira

quem sabe um demônio tomando meus dedos e redigindo um supremo chamado à imponderância

e se me perguntassem: há solução?

responderia que não sei

responderia que talvez devêssemos trucidar a instituição

e com ela nove décimos dos bilhões gente vivente

mas não é paradoxo demasiado insípido solucionar com morte à vida?

quisera perguntar a pergunta mais adstringente

um tal ponto de interrogação inescapável

que não permitisse a quem o lesse uma fuga ao banal

uma dúvida tão profunda e angustiante que nos arrematasse em certeza insolente

vá lá, sem hesitar, nem pestanejar, hei-de improvisar:

permites a si mesmo uma morte e um renascer em nome da vida?

e então sou outro

ultrapassei-me

insólito

e tão só

imaginando se em trezentos anos isto arrefecerá o ódio dalgum andarilho

ou se na esquina da eternidade Deus computará isto como devaneio propositado

sempre em frente

a lentidão implode

em paixão estupenda

uma guerra sem fim

o medo da morte

se desenrolando em mil antecipações reducionistas

concebendo mil epifanias alucinantes

não quero viver temendo à morte

porquê não sei o que ela seja

e apesar de tanto afirmarem ela ser a única certeza

me indago: como pode ser tão certa se nos é exatamente a fronteira separando experiência de desconhecência?

já disse hoje que morreria justificado se morresse hoje

e me coçam os pés já em sede de baile e estupro

me açoita já minha sinceridade autômata

exigindo que sele meus lábios e sorria

que conceba um linguajar inédito

que transmita irrestrições como quem faz cafuné

que em lampejos expulse o asco e demonstre a beleza do fato

ai, desse vício factóide

há muito que não se pode ver

e muito do mais importante não podemos ver

mas também não nego a intrépida solidez da aparência

acato à superfície

respeito a intuição

apesar de mansamente me afogar em descrença

apesar de cinicamente me endurecer a força de irônicas insapiências

e então vejo um oceano de negação

como a mais potente certeza

um oceano de negação como a mais potente certeza

o inexplicável como estatuto da lógica

o indeterminável como lei suprema da constatabilidade

o inimaginável como constituição última da arte

o inconcebível como afirmação pétria da capacidade

o inegável como perfeita comprovação da incerteza

o intransponível como imensa dispersão de foco

o irreprimível como insidiosa ferramenta ao descaso

o inevitável como explícita possibilidade de remanejamento

o inapreensível como eterna seita de sapientização

o irredutível como soberba tirania da entropia

o imponderável como profunda noção de presença

o inabdicável como cintilante ânsia de desprezo

o insustentável como primícia duma experimentação

levanto a cabeça

respiro fundo

e que mais tenho senão isto?

que mais temos senão isto, leitor?

senão o podermos levantar a cabeça e respirar fundo?

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