Cazuzando

E se eu visse o número
De dias que ainda tinha
E fossem míseros escassos.

E se minha força bruta
Estivesse corroída ao âmago
Por uma maldição xenófoba
E o extremo carcereiro
Aferrolhasse o cadeado.

Ai que seria de minha amargura
De minha indolente preguiça
Que seria deste praguejar sonoro
Sina alucinada a que chamo rotina.

Que seria de tanta relutância
E sonhos por nunca cumprir
Que seria de minha pompa moral
De todos os amores que deixei por menos.

Ai profunda dor da saudade
Da maravilha do vislumbre
De tudo aquilo que apenas
Quase viemos a nos tornar.

Serei sempre um quase?
Sempre o choro sem consolo?
Serei sempre a dança de águia solitária?
Sempre a guerra contra a peçonha?

E se urjo e insto por outro momento
Por outra realidade outro futuro
Talvez ainda me debilite ainda mais
Dando às costas aos cobradores
Quem sabe se erro por não falir
Quem sabe o melhor caminho a seguir.

Piso com força
Mas cuido dos joelhos
Assim como amo
E evito a fascinação.

O poder vinha adverso
Era quase como um poder contra si mesmo
E então se dava conta
De que a maior conquista seria sempre o silêncio
A capacidade de ver
E de sentir com os olhos.

Do Lembrete

É bom ser real
É bom ser pra valer
É bom falar o que sente
Tentar o que almeja
Cantar o que apaixona.

É bom gostar do bonito
É bom sonhar pra acordar
É bom dar as fuças a bater
Errar pra aprender
Apanhar e se fortalecer.

É bom viver seu tempo
É bom escolher o momento
É bom ouvir o coração
Respeitar pra conquistar
Oferecer pra se alegrar.

É bom entender a vida
É bom se entregar
É bom se desentender
Perder pra ir buscar
Morrer pra ressucitar.

Desavesso


Ele entorpecido
De cevada fermentada
De sambarrocks e maracadubs
De poesia real demais
De cânticos inesperados.

Ele assombrado pelo que já não devia
Alarido do sonho que insiste
Da ânsia insana de quem sabe
Ai doída sina quem sabe um dia
A gente tomar um café por aí
Pra mor de conversar.

Eu queria pegar naquela mão
Mas ela praticamente não existe
Como praticamente não existe o tesão
Da corrida que se foi desamparada.

Juncos em brasa
Uma esperança estúpida timbala
De reatar nós que não cabem mais
De alcançar o glorioso
Do poeta que filosofa.

Um amor forte
Cura qualquer doença
Como um coração esperançoso
Realiza qualquer desejo.

Rir
Pra não chorar.

Apassional

E não será a mais funesta mentira
Exatamente metade do alicerce
Que nos provém da noção da realidade
Da vida?

Não será a mais inglória ilusão da paixão
Tão essencial e necessária
Quanto a mais fria compreensão dos objetos?

Surrenderizado

Transfugidio holocausto
Da beleza inescapável.

Deveria o arco-íris agradecer ao poeta
Pela mímica senil dos verbos
Ou não é o poeta quem deve agradecer
Pelo desfio sadio das cores?

Todo dia o balde vai ao poço
Um dia o fundo seca
Desiste
E se eu for culpado irei pagar!

Ah glória seminal do fósforo alarido
Ah suntuosa tosse arredondando as bordas da existência!
A ressaca dos calcanhares arrefece quente
E todos os loucos vêm cirandear comigo no transe hiperbóreo.

Qual será a fronteira
Entre a consciência e a loucura?
Ai refestelo juvenil
Já bem o sabes ardil arguto cabrão
Fronteiras só há inventadas
E quanto mais água mais transparência.

Ó júbilo histérico e contido!
Ó sapiência tão caliente da cascata trincante
Pocam cachoeiras maravilhosas em minh'alma
Tanta hidratação afônica
Que me trouxeram àqui.

Juventude extrêntica
Esbravejando impávida
Trucidando por compreender
Exatamente àquilo que jamais poderia
Compreender-se a si mesma.

Mas o vento ao jardim
Vozes suaves na rua
O vizinho abrindo venezianas
A miríade dos contatos ativos
Carros passando sobre um tampo de bueiro
Telefones intrusos sobre a avó ao piano
Uma sirene distante
Uma moto sem sonorização
Uma buzinadinha sonsa
Um leve frio nos pés
Tudo isto e mais um pouco
Me mantêm honesto
Presente e palrador
E sem querer querendo
Rude aos que fazem me elogiar.

A suprema e anciã magia -
A Dimensão Da Dança.

Evaluação

Conforta-me saber
Que partilhamos do mesmo céu
Tão distantes
Mas sob as mesmas estrelas
Acolhe-me o saber.

Em algum lugar
Lá fora
Sei que alguém pensa em mim
E me ama
E se o amor nos ajudar
Nos encontraremos
Onde os sonhos se realizam.

Um conto tão simplório
Tão delicadamente sombrio
Perder-se da família
E reencontrá-la -
Sei que oram por mim
E me embala esta paixão
Que liberta e encarcera igualmente
Sob o pálido luar.

Em algum lugar lá fora
Vamos nos reconhecer à multidão
E a saudade se extinguirá
E choraremos nossas pitangas
Pitando um belo charuto cubano!

Metestesia

No início era o corpo
E o caos desdisse faça-se o instinto
E o instinto se fez.

No primeiro dia
O horizonte e a terra notaram o ritmo
E com ele o contraste entre claro e escuro
E viram que as cores se seguiam
E isto era bom.

No segundo dia
A água nasceu e jorrou em zéfiros pelo infinito
E se sublimou e retesou de acordo
E os oceanos se dividiram dos céus
E isto era bom.

No terceiro dia
O vento soprou em sementes as terras
E delas vieram frutos e ervas
E os troncos e copas multiplicaram
E isto era bom.

No quarto dia
O tempo espirrou estrelas
E os astros e luas se espalharam
E assim nasceu o zodíaco e a matemática
E isto era bom.

No quinto dia
A água dos mares e dos céus respirou
E da respiração surgiram as aves e os peixes
E a inteligência evoluiu à consciência
E isto era bom.

No sexto dia
As aves e os peixes caminharam
O homem e a mulher se amaram
O forte tomou do caos toda vida
E inventou a divindade e vestiu sua coroa
E isto era bom.

No sétimo dia
Deus se embriagou de vinho e cânhamo
Chamou musa à mulher e revelou o orgasmo múltiplo
Então escreveu um livro sobre isto
Depois plantou amendoim e bananeira
E a dança o ensinou a voar
E a alegria enfim descansou.

No início era o verso
As mãos debateram faça-se a música
E a mística se fez.

ESTÓRICO