Sedução

Principia morna
Tão imperceptível geralmente que é quase por normal não se aperceber dela até fase avançada
Principia morna
Tênue e sucinta
A infância que quando se tem sorte não é destroçada pela violência da pobreza
Principia morna e pouco a pouco alcança ebulição
Carameliza o sumo do ser pouco a pouco
Enrijece-se -
Principia morna e estúpida
Quase insignificante
Não fossem as infinitas improbabilidades geradas por cada parto
Principia morna e desprezível
E por vezes vive-se décadas sem nunca confrontá-la assim lúcida lúdica e demonstradamente
À presença de si mesmo.

Principia morna
E depois quando ebole
Rapaduriza-se e novamente se desmancha
Ficando das raízes da memória senão fantasmas
Que deixamos de ser as células que já fomos certo dia
Completamente
Deixamos de ser o bicho propriamente dito que éramos quando crianças
Mas algo restou
Costuma restar
Como uma confluência de sonhos nos instigando a tal ou qual técnica de entretenimento
Como pequenas cenas inesquecíveis e também inelutavelmente esquecidas
Resta como um arrepio brotado do ventre coluna acima
Regelando a paixão
Como uma tosse insensível e ao mesmo tempo absolutamente programada que arremessa o pensamento no mais linear silêncio.

Principia morna
A bastarda
Coitada
Principia inútil e em geral continua assim até o fim
Salvo as ressalvas -
E mesmo sabendo da inutilidade não calunio o resplandescer do inevitável
Não praguejo irresoluto me convencendo de superioridades ascetas insondáveis
E depois de matar a sede no regato sagrado
Depois de acalmar as feras e fundir as esferas
Depois de me resumir a uma ânsia por silêncio e à prestidigitação esclarecida do silêncio
Depois de me perguntar de novo e de novo sobre como foi que cheguei à conclusão de que esta coisa a que chamo de sofrimento é exatamente sofrimento
E porquê mereça enfim lamento
Depois de prantear por dádiva à minha própria malícia
Serestar às Vênus e Órions distantes
Depois de fartar-me de figos e caquis espinhentos rutilosos num oásis perdido no maior deserto
Depois de tudo isto de muito menos ou de muito mais
Depois de alguns bons lances galgados na jogatina do amor
Arde então uma alma.

Arde e se relembra
E despreza-se a si pra que a lembrança não tenha mais valor que o momento presente.

Arde e sonha e escancara pálpebras pra fazer da realidade o sonho
Arde e vive e se sacia e deseja sempre mais
Ddeia e distingue sempre mais
Arde e se se contrai
Pode tornar à mornidão
Mas já não à mornidão original
Que o passado é pedra irremovível -
Arde e se se torna novamente morna
Pode resfriar-se
Pode até mesmo congelar-se
O Mistério Da Pedra -
Arde e se se congela
Se grita o grande grito do silêncio da pedra
Então se torna gravidade
Se torna sol e sistema solar.

Então vive dentre a gentama estranhamente
Como um demônio
E trinca e rejubila como palhaço irresistível
Cócegas na alma
Só de deixar-se estar assim assim sorrindorrindo natural.

Que o relaxamento é um sorriso
O relaxamento em eixo.

Experimente
Aprume-se
Firme
Mantendo o diagrama
Trabalhando o diafragma
Tudo sempre em frente
Espie os quatro cantos
Relaxe aprumado nariz virado pra frente
Queixo e umbigo e tudo mais alinhado -
Sorri-se
Que o gesto sorri quando relaxado em aprumo
É natural a alegria ao organismo
E o próprio esforço inteligente fortalece
Guia
E o riso cedo ou tarde eclode
A fascinante letargia do que caminha por sobre pontes sem fim
O estupor agradável e mordaz do que desliza por entre eternidades.

Distopia Violeta

Bate a estaca colossal da maraca
Vai de circe e rumbata
O tropeiro o cabra safado o molesto o inapto inútil insano
Sem apegos nem apeios vâmo que vâmo e brilhe O Amor no meio.

Rima santa da budega
Tom astuto do caboclo
Médico e louco de que todo mundo tem um pouco
Os trejeitos estrimiliques
Os cacos fanhos enfadonhos e as lótus em meio à toda moléstia do pântano
O santificado em descrença e destino
Talvez mesmo um desgraçado
Porém sempre só e somente entregue
Devoto dum influir de hálitos
Mesmo quando em desencontro e desatino desvairado
Mesmo quando hipócrita entre tropeços inexcusos
Mesmo quando aprumado e assim taltal desperto
Sempre só e somente entrega e reclusão
Reclusão bela duma comunhão plena que é necessária à vivacidade
À plena e irrestrita peculiaridade do porvir.

Da Vulnerabilidade Inerente

Quisera realizar em vigília meus sonhos mais perversos
Quisera apaixonar-me por mim mesmo por sedução de meu amor pela vida
Em descambagens e rodeios deixei de me importar com tanto
E tão grosseiramente -
Quero ser o supremo sonho da vigília
Esboçando assim meio humilde a minha gâna
E quando se diz quero
Sempre completamente irresponsavelmente
Por mais que queiramos afirmar controvérsias improváveis
Por mais que queiramos afirmar um livre-arbítrio ou um juízo individual
Sempre que se diz eu quero
Se diz também sim a uma pequena alegria.

Alegria do poder de crer
Não crer como numa coisa ou em alguém
Mas saber simplesmente que tudo que está aí
Quer dizer por aí afinal em toda parte
Que tudo isto é de verdade mesmo e existe na realidade comum a todos -
Comum no sentido comum mesmo
Não é tão simples quanto parece o exercício de simplesmente se aceitar à completa irresponsabilidade incorrente em todo ato
Em todo mínimo estímulo ou reflexo ou desdobramento de estímulo.

É fazer do suor uma lâmina de cristal
Nadar com escamas de salmão humano
É voar como a andorinha branquinha afogada no verdemarrom da selva virgem
Entre galhos ora bebendo de pitangas ora de tamarindos
Vez ou outra mordiscando castanhas perdidas de marsupiais
Nadar em rio pedregoso límpido como o cristal mais límpido
As corredeiras incríveis capilares de nossa faunaflora como o néctar mais suntuoso e delicado
Quase a nutrição toda em si
A holística toda em si
Na terapia da água dum rio transparente.

É rabiscar de leve num papel branco nossas pequenas impressões instantâneas
Tentativa de traduzir em traços soltos semialeatórios uma forma que eventualmente predomine e então guie toda criação
E os espíritos que deixamos esvoaçantes nestes papéis
Nossas Sodomas e Gomorras erradicadas
Apocalipses e zoroastrismos
Toda literatura da fagulha tranquila
Do anzol fatal irresistível
Gaya nossa mãe
Alfa e ômega de nossos santuários de molibdênio fantástico
Gaya rainha matrona
Juíza e meretriz
Deus e seu pecado original
Gaya de sol e buritizais fractais
De trilhênios de idade e população
Gaya máter soberba A Musa sem igual azul sem fundo de meiodia equatorial.

Salve a harmonia da mente e do coração
Vivam os frutos das sementes que virão.

Só pra me mostrar sem máscaras
Despejar a abundância da realidade
Só pra esfregar na cara uma fragilidade
Pontuar uma fraqueza universal e guerrear pela superação de si
Pela paz da vitória por sobre a população de si
O aniquilamento de todos fragmentos sinápticos desordenados de nossas esquizofrenias.

Mantra do sim
Dizer sim a uma pequena alegria
Ah meu caro minha cara
É dizer sim a todas as alegrias
Pequenas e grandes
É dizer sim a tudo que já foi e que ainda vem
Tudo que já voltou e também àquilo que torna sempre a correr
É dizer sim ao sempre -
Viver o sempre
Que a vida não é senão este sempre que brevemente sobrevém
Esta férrea euforia que toda presença transpira ao se dar conta de si mesma.

Das Cócegas

A alegria mais fortuita
Mais gratuita
O ponto fraco das mais pétrias
Um pudor mesmo pros mais rijos
Espasmos incólumes
Contrações paradoxalmente relaxantes
Vertigens e afogamentos em lágrimas dum riso que se não pode conter.

Claro que exige-se sempre um interlocutor por assim dizer
Pra que venham à tona as ditas cujas
E então as cócegas ficam como símbolo deslumbrante da civilidade
Como prova cabal e última de que valem a pena os contextos
Esta estória toda de humanos interagirem e integrarem-se entre si -
As gargalhadas mais fáceis
A alegria mais eruptível mesmo ao seco e azedo
A justiça feita mesmo ao mais infeliz.

Que seria de nós e do mundo sem elas?
Que seria de todo tesão transparente
Aliás haveria algum tesão sem elas hoje em dia?

Claro que estou falando de tesão no sentido mais involuntário e também mais ponderado da coisa.
Tesão que são as auras em embate sinistro
Genes e fenes exigindo prole daquele elo
Tesão que refresca os espíritos
Furacão intocável
Invisível
De magma malicioso em sétima dimensão
Lascívia funesta reafirmando sempre e de novo e de novo a perfeição da dominação
Da violação.

E segue o experimentalismo tropicaliente
Iriscidências tresloucantes em ditirambos apopléticos
Esta rouquidão sequiosa de abês e agogôs
Marchas e flautins mórmons
Esta maratona epopéica do banal
Crônicas triviais dum cotidiano tecnosférico decadente
Os degraus na escalada ao além
Tantos degraus de cabeças por sobre as quais escalamos às órbitas mais brilhantes e amenas da liberdade.

Lapidador

A Eternidade viva
Todo instante enclausurado no monumental impostergável do já infindo
Nós gemas raras
Estrelas multicôrmultitôm versando ao negrume da meianoite suas signatas em névoas néon inefáveis.

O amor tão simplório e sagaz
Solução tão complicada
Assaz pungente e lancinante
Nos fendendo em abismos de vórtices plásmicos
Unfinitudes em vôo quântico tão bregas e mesquinhas
A purificação tão ardil e perniciosa de nossos umbrais enfadonhos
Seus lamentos fora do tempo amargando as entranhas da mãe
O mar refulgente de platina do coração do tudo
Estático e extático em progressão geométrica multipolar exacerbada
A pedra de luz digital sem fim que é cada mínima indivisível partícula do cosmos.

Uma inguinorância sacana esclarecendo aumentando o volume do estéreo
Os pés lépidos tépidos déspotas mártires de toda alegria ardente e muda do bailado elememental
O hálito pulsante duma biosfera sem últimas instâncias
O ar livre de nossa morada beirando cingindo a tangente púrpura do impétuo
Nossos ângulos e eixos e demandas e gozos
Nosso musgo nosso gosto nosso nojo e o doce
O inevitável infinitamente recorrente macio e deleitoso como pudim de leite da vovó
A vida que se esquece de viver
Se esquece de planejar e de maldizer
A vida que se esquece de si no apogeu de sua glória
O patamar sem nome nem rumo de sua maturidade
Seu labirinto desovando o suspiro da presença.

Mais Sobre O Grande Quarentedois

Plácido demente
Eu entre minhas desfocagens néoxamãs
Sutilmente perturbado por uma esquina
Estátua de ouro que eu fazia de mim
Fiz-me liquefeito novamente
Massa prima ao fermento.

Meu ser de barros e metais
Meu estratagema nú
Eternamente nú
Dissolvido
Diluído
Desmanchado
Uma nova forja de escudo e espada
Sempre num oceano de gratidão
Cantando canções secretas à alvorada do amor mundano
Ah este sim tão humano.

Os cocriadores que somos uns dos outros
Personagens numa mesma trama de drama e sátira
O violeta e o vinho que somos
A cura que somos uns aos outros
A cura que é nossa dignidade -
Dos timbres mais mágicos
O da grama
O do inesperado
Inocorrido
Do empurrado
Engatado
Do atravânque constante dos infinitos momentos entre si
Dos infinitos detalhes entre si.

Voam as águias sorridentes
Transmitem a herança da força
Pertinazes
Riem-se os ursos as fadas e os faunos
Cantando uma mesma canção silente
Comovente momento entre comparsas
Desafiantes
Divina soma entre fugazes.

E também nossas frugalidades
Nossos ódios refreados e toda soberba de nossa paz
Os aplausos entre lições de amados
Uivos escarlate fazendo arder todos os pés
Correr todas as naus
Nossa sacrossanta fogueira
Impossível de nossa rotina
Enquizilamento adestrado
A viagem única de cada ser
Sua memória folgando nos éons lancinantes do magenta
O Coração de Gaya túm-túm túm-túm.

Wakanimagaya
E A Grande Pergunta continua sendo
Qual é mesmo A Grande Pergunta?

Sobre O Quarentedois

Ele está em todas as partes
Mas não é testemunha de nada.

Não se pode adorá-lo como a uma onisciência qualquer
Ele é melindroso demais
Requere o senso de saúde mais apurado
É o saborear do vinho e do queijo
É o hábito de nos excitarmos e deprimirmos assim ou assado usando da vera ausência de fronteiras tão bem trabalhada pela natureza -
Não é pouco ter bom gosto.

É ter de se entender mera massa salivante
Oxalá saltitante
Ter de se vestir de sonho de padaria e de braseiro pra carneiro na sálvia
É o constante autodigerir-se
É este quase esquecido rosto
Por detrás destoutro rosto
É provar com prazer da própria saliva
Consumir-se a si mesmo como à mais farta ceia
Pois que não somos senão esta refeição
Libidos e egos cozidos fritos requentados
Com bastante farinha e pimenta
Que este Brasil é pátria piniquenta.

O monstro segue rolando.

Mil trombetas de gáitas e sanfonins
Mil escolas de ziriguidum
Toda prece disfarçada
Toda criação benlograda
Nos espavorindo
Espavoneando leques de luz e magia
Num caleidoscópio de zilhões de espelhinhos
O foco espetacular de nossas atenções.

E aliás atenções por favor!
Destensionar por favor!
Atenção infinita agora vâmo lá!

Eia Brasil devorador de gente eia monstro indomável!
Nasceu tão descabido tão maufalado
E como um dragão ciberdélico vejo-te abanar o rabo como um Cérbero pacificado
Sóbrio e dócil
Vejo teu coração
Magnetismo pulsando as intranets de nossos empreguinhos
E toda arte virtualizada que corre em tuas veias
O sangue e o esporro que nutrem teu mercado -
Afunilas as almas numa torrente de doença
Mas isto é tudo que tenho de que lhe criticar
Poderia mesmo dizer
Fraco do homem
Fraca da terra
Por não suportar nossa inteligência
Por ser pequena demais
Insuficiente
Incapacitada de existir em status quo cósmico quântico e outros mais
Fraco de mim
Por me amedrontar com a mutação inevitável que tal atmosfera me impõe
Fraco de mim por não encarar de frente esta ânsia iconoclasta
Que me impele à estrada
Ao subjugo dos compromissos burrocráticos -
Bem pois bem
Está feito
Ao menos posso desvendar meu cinismo
Já não sei mais cumprir ordens
Por isso tenho de ordenar-me a mim mesmo
Ordenhar-me a mim mesmo
Com patas de leão.

E fica então demonstrado O Grande Quarentedois como um vórtex digressivo voraz dilacerando toda falta de significado
Inundando cada nanométrica ranhura do Existir com a noção tão simples de que tudo seja perfeito
Esta lucidez opressora de sentidos e instintos
Os pés no chão.

Pasargadar

Bóra pasargadar!

Vou-me embora do aonde nunca pertenci
Vou-me embora pro infinito
Pro eterno amor de que nunca me esqueci.

Vou tocar e dançar na minha sala de estar
Anarquizar a alegria aqui e acolá
Dadaísta matreiro me desbragar.

Vou rimar por ânsia de ritmo
E sorrir por ânsia de mimos
Vou escalar os alpes
Beber de todos os cimos
Vou troar todos os sinos e fisgar às mais nobres sinas.

Vamos juntos todos a voar
Leões risonhos e pombas a planar
Vamos nos fundir
Imergir
Na deidade parida de nossa amizade
No oceano de flores de amores.

Explosões sem fim de astutos volatins
Em cabriolagens camaradas pelos peremptórios e confins
Fartas ceias de bacantes
Amantes embasbacantes
Pondo à mesa as safas e as sãnhas
Nas manhas.

E em cada manhã
Sem artimanhas
Seremos mais fortes luzeiros
Por obra de nossas loucuras
Seremos os sábios incompreensíveis
Os gênios invencíveis
Prostrados em nossas coragens
Imóveis
Imóveis e correndo pelo mundo
Rodando às rodas das grandes paixões
Os furibundos trovões.

E o sol há-de nos ser sempre mais dourado
A água há-de nos ser sempre mais reflexo
Nossas alegrias hão-de se elevar aos mais excelsos píncaros do instantejá
Talharemos juntos a pedra do vento
Extraindo da transparência a suprema afirmação
Os totens reclusos de nossa emoção.

E quem sabe
Incrédulos e déspostas
Possamos usurpar às vidas uns dos outros ao extremo
E façamos a mais pérfida e perfeita transação de espíritos
Vivendo as vidas uns dos outros simultaneamente
Unos e distantes como os sulcos duma grande roda dágua
Roda girando
Dando luz à cidade da novidade
Arrastada pela ação motriz do rio nascido do encontro de nossas fontes
No último delta de nossas vontades.

Borboletrismo

Improviso agreste
Tangenciando a esfera sem medida de meu pulso
Balbucio sem pressa
Cochicho e sussurro
Faço buxixo e rebuliço
Feliz à beça.

Não toco o que sei
Toco o que ouço
Pingo os pontos e deixo os ís incompletos pra um leitor arguto coparticipar.

Vem o refrescante toque duma comunhão despreocupada
Vagas de sorrisos e temperanças entre parceiros da malemolência
Entre irmãos na dureza leal.

Com uma mão somente me faço diluir e alentar aos acompanhantes suingantes
E com a esquerda a torta canhestra brinco de contraposições injustas na disputa sem regras da capoêra
Não preciso de muito
E nesta sorte
Ou neste azar se assim convém ao pressuroso
Faço-me necessário somente a este ou àquele
Mas são estes e aqueles mui especiais
Sinceramente indispensáveis
A mim ao menos
Morosos aliados indispensáveis enfim
Como o contraste perfeito da solidão sadia
Um contraste que é como o contraste entre o verde e o roxo
Mais um complemento que uma oposição.

E nossos amarelos e anís seguem acasalando
Até promessas de matrimônios indizíveis rasgam o ar em shiatsus amorfos
Nutridos de volúpias infatigáveis
E isto entre irmãos
Sempre e somente
Entre os que se entendem entre si na completa remissão das ânsias de definição e compreensão propriamente ditas
Compreensão no sentido laico e tedioso do atravancado cientista.

Pouco a pouco marcamos à pedra novas leis fugazes
Registramos a estória do que há de ser lenda e mito na pátria sem nome de nossos benfazejos descendentes
Pouco a pouco com foices de diamante vindimamos as liras e podamos as vinhas de nossos jardins transcendentes
Cultivamos as hortas sem fim de nossa nação simplória e alegre
Tão sofisticada em seu primitivismo.

Dos Paradigmas Extemporâneos

Deus morreu já algumas vezes
Foi ressuscitado em outras formas e morreu de novo
Mas continuam fazendo-lhe respiração bôca-à-bôca
Continuam desfibrilando-lhe o tórax putrefo e bombeando-lhe donativos de sangue universal
Morto e enterrado
Foi exumado
E seguem o trabalho de Frankenstein em tentar trovejar uma nova faísca no insidioso corpo
Mosaico de rígidas covardias e trêmulas entranhas
Inventam ainda hoje intervencionismos e passeatas que fazem ranger ainda outra vez as correntes enferrujadas e quebradiças do fantasma da maior consolação que o homem já nutriu
Pesadíssimos
Os crentes atemporais descartam toda realidade que os oprime com a clareza da obviedade
Desprezam este pequeno avanço que nosso gênero alcançou dentre tantas batalhas sangrentas
Travadas ora em nome do puro e simples domínio tirano
Ora em nome de parâmetros civilizacionais minimamente acatáveis.

Eu por minha vez não nego minha culpa
Meus sufrágios
Em tal âmbito vergonhoso
Não nego que tenha ludibriado estupidamente um ou outro comparsa com prosaicas odes ao insondável
Mas tento me retratar
Mesmo que afogado neste anonimato
Mesmo que somente me faça retratar frente a mim mesmo
Em minha soledade.

Se há um Deus
E ele é sol e astros e natureza
Então chamo-O eu de sol e astros e natureza assim como fazia o grande poeta noutra época
Vejo a perfeição da divina criação como a mais impensada tosse
O mais imprevisto espirro
O mais inconsequente desatino
O instinto mais carente de arbitrariedade e previsibilidade.

E assim inventam-se novos consolos
Nasce a doçura na saliva
Como nascem os atuns na feroz corredeira
Fortifica-se a arquitetura do coração
Espelhando a geometria das colméias mais selvagens
Desaparece a mais antiquíssima ira
Sedenta de Eternidade
A amarga voragem que age sempre em prol dum além-mundo
Duma próxima encarnação.

Não quero descartar a suprema afirmação do impossível Sim
Veja bem ainda vejo um infinito de tempo entre meus dedos
Mas sei que este infinito por ter um começo tem também um fim
Fim no sentido de término mesmo
Porquê achar fim no sentido de finalidade já é outra saga.

Aprendi a confiar em meus instintos
E me dei conta de que a originalidade do gênio
O impecável no artista irrepreensível
Nada mais são que meras consequências impontuáveis duma necessidade de significado.

Que significado criei a mim mesmo?
Como pude inventar minha verdade
Este segredo irrevelável em que ninguém creria?

Ah bem
Honestamente
Só aceitei ao fato recorrente de que não há um instante a perder
E também ingressei na escola que ensina as profundas diferenças entre a solidão e o abandono de si.

Em meio à argamassa disforme deste princípio dum novo milênio
Sigo caboclando
Sigo versando em instrumentália os aforismos de minha tropicalidade
Vez ou outra sinto arrepios platinados percorrerem-me como a mais indesejada confirmação de que sigo um caminho valoroso
Indesejada porquê tal caminho seja tão tortuoso
Tão arriscado e vazio de recompensas
Ao menos fica um vácuo sensorial no que antes era toda uma teoria incompreensível a respeito da justiça congênita à vida
No que antes era a teimosia doutrinária dum constante comércio de culpas e punições
E isto já é algo como uma recompensa
Se é que um vácuo pode ser um bem
Uma aquisição.

Algo como um ultrarrealismo cantarola
Saltita entre neologismos siderados e parábolas bem-humoradas
Uma dança que é a transcrição do rutilar da presença em onomatopéias venturosas lidas em voz alta através de linguagem dos sinais.

São Afrodísio

Quanta sorte tive na vida
De conhecer o profundo significado do aloha
Deveras
Quanta sorte tive na vida
De morrer de tesão pelo belo e viver um celibato às avessas que é um perfeito desentendimento do que seja o celibato.

Os dados rolaram a meu favor
E inclusive quando fui à bancarrôta
Quando vi o duplo-zero na roleta afanar de mim as economias duma vida toda
Os dados rolavam a meu favor.

Me fiz cego certa vez
Por força duma idéia fixa
Por neurose de crer que as coisas do mundo e do cosmos haviam nascido pra uma tal finalidade pré-determinada
Aliás mui pior que simplesmente pré-determinada
Pra uma finalidade infinitamente agradável e satisfatória
E me fiz cego e crente
Inventei um Deus sem precedentes
Que me acolhia como o filho favorito
Tão longe voaram minha presunção e minha ignomínia
Que me afirmei irresoluto O Justiceiro
O Redentor
O de lenço marcado à lapela
Que havia de instaurar o reinado dos reinados
Que havia de liderar os exércitos celestes na última grande guerra entre O Amor e A Besta.

Mas mesmo assim
Afogado numa alienação absurdamente ultrajante
Os dados rolavam a meu favor
Às vezes ainda sinto algo como uma ânsia de compreensão infalível
Esta angústia degenerada que sugere que as teias de coincidências que elaboro em minhas rústicas utopias sejam realmente obra satírica dum onipotente onisciente infinitamente perverso e entediado
Mas a violência da lucidez me remete sempre ao banal
Graças aos bons céus
E retenho novamente em minha organicidade toda incerteza e abnegação de absolutismos
Saio vitorioso enfim
Apesar de completamente desprovido do senso de plenitude cifrado pela fé cega.

Digladio comigo mesmo em prol duma clareza de sentidos
Dum silêncio incorruptível
Não que eu queira estar eternamente calado mui pelo contrário até
Mas mesmo meus discursos mais inflamados são pra mim silêncio intransponível
Quando vivo das entranhas da Terra
Claro que o silêncio não passa dum silogismo anacrônico circular ou elíptico ou enfim
Mas o controle sobre o fluxo intermitente das sinapses e das mitocôndrias
O poder de conduzir o pensamento sem o uso de palavras de narrativas
É algo bem valioso e que me apraz e convém cunhar de silêncio
Isto só pra me fazer entender
Claro mas completamente confusamente.

Que importa!
Já dizia o sábio persa
Que importa eu e que importa você!

E depois de cruzada a ponte
Depois de deslizar pelo arco-íris até mergulhar no pote de ouro
As pequeninas vinganças secretas e inconscientes ainda me assombram
E não quero me permitir repugnar-me comigo mesmo por razão de prepotências inúteis
Não quero viver uma vida de arte e criação que seja meramente um despropósito intransigente mascarado de grandiloquência
Aliás assim e assado por vezes me sinto ventríloquo de mim mesmo
Ou mestre do fantoche de mim mesmo
E por mais que o teatro faça sentido e expugne a melancolia
Quero ser ator apenas para superar o ator.

Ainda há muitas casas a edificar!
Também dizia o sábio persa
E em minha pequenez me dei conta do trabalho de formiga que é a evolução da consciência.

Não que não ache que possa ajudar a fulano ou siclano
Me transvestindo de professor e profeta
Mas já a própria lição me parece irrelevante no que tento dar pompas de categoria imperativa ao texto.

Minha evolução serve a mim mesmo
Talvez
E Deus assim queira
Sirva a filhos meus
E ou também a amigos e inimigos
Os melhores são sempre os dois ao mesmo tempo.

Mas não que sirva a qualquer um por ser algo de valor a eles
E sim somente por ser algo de valor a mim mesmo
Então talvez faça-se ensinada uma lição de hierarquização de vontades e desejos
Não como a apresentação dum organograma de valores e morais da estória
Ao menos não somente como isto
Mas como a ilustração cristalina duma superação de si
Uma fotografia indesejada dum campo de guerra demasiado ímpio.

Tudo passa tão rápido
Ah voa com o tempo
Como beija-flôr estuporado em marcha-ré
O tempo
Esta coisa quase indecifrável
Indefinível
Mas tão irremediavelmente inegável
Tão obtusamente inerente e odiosamente inescapável.

E então me sinto redentor
De súbito
Por ter aprendido a aceitar o passado exatamente como seja
Por ter realmente aprendido a amar o inevitável
E a pulverizar toda discórdia de meu coração com um bom trago de abismo
Por ter descoberto a maravilha da linguagem solar
A gramática cigana e mutante de nossos risos e sorrisos.

Aí Caí

Sol sem trégua
Noite refrescante
O dia escondido.

Vagalume pisca
Sítio em canto
Rola o rio
Sangue experto.

Pinga sono
Foge peixe
Estica luz
Arde hálito.

Lua cheia
Maré alta
Uiva o lobo
Goza a moça.

Em verso
O inverso
Do avesso
O reverso
Do perverso.

Guerra amada
Cavalo bêbado
Segredo volátil.

Tique do sotaque
Cheiro do sovaco.

Perdição em breu
Solilóquio ateu.

Tosse tosse
Chora a besta.

Xinga mãe
Bate porta
Voa beijo
Silvo agudo
Abre abismo.

Mundo imundo
Pança cheia
Gasta labuta
Esquece minto
Redentor amor.

Influências

Me faço pensar na gratidão que criei a estes e aqueles núcleos referenciais
No peso que me fiz carregar às costas afim de dialogar com os mortos e vivos que mais me ensinaram.

Uma batelada de bons músicos e poetas
Este e aquele filósofo zoroastra
Uma ou outra musa
Um ou outro melhor amigo
Me faço perceber que sem esta teia de relações em que me fiz grudar
Não haveria noção de espaço-tempo em minha obra
Nem muito menos qualquer chance de compreensão de dádiva.

Em casos raros
Minha influência sobre outrém se fez também notar mui notável
E então me dou conta de que faço alguma diferença pro mundo que me rodeia
Este mundo que roda e em que rodamos até que nossos pneus fiquem carecas e nossos carburadores nos deixem na mão bem no meio da estrada de terra do sertão sem fim
Bem claro que esta diferença pode até agora ser praticamente absolutamente irrisória
Se nos compararmos a Napoleões ou Cleópatras
Mas também me parece bem possível uma hegemonia intelectual nascida dum beco escuro do cosmos virtual de nossa contemporaneidade.

Quem sabe
Certo?
Quem sabe se as ordens que imponho a mim mesmo se fazem claras aos transeuntes que me lêem?
Quem sabe se as ordens que obedeço ou desobedeço em mim se fazem lições aos morosos que lutam pela vitória transparente sobre si mesmos?

E enquanto tais especulações compassivas me fazem regelar na certeza sólida de que mesmo nossas maiores certezas nunca serão tão certas
Enquanto a vida corre em torno de mim em velocidade estrambólica
Esculhambante
Enquanto meu tempo é quase estático em minha extática elucubração
Enquanto as harmonias do amanhã me presenteiam com verdes e roxos rubis duma esperança dialética e demasiado mundana
Enquanto tudo isto
Algum senso de virtude se apodera de mim.

Não sei bem qual virtude seja esta
Talvez a simples decisão de vibrar com a Terra seus desígnios tão simplórios
Mas seja como seja
Este senso de virtude me alcança repentino
Como um trovão que brota de meus dedos e ilumina por um instante passageiro todo breu de meu Desconhecido.

Fazer música e amar às mulheres
Manejar bem a marreta o açoite a pena e a alfaia
Alvear-me por meio de confissões disfarçadas de súplicas
Voar como águia por sobre o bolor o musgo o mofo e a erva daninha de toda ética dietética
Enrijecer toda flutuação de minha fibra e lubrificar cada partícula de minhas íris.

Quem sabe se o límpido azul celeste que me incendeia de paixão é tão claro a ti caro leitor quanto o é a mim?
E veja bem
Sou herdeiro duma fotofobia congênita por parte de minha mãe
Mas por força de iôgas anômalos e maracatus absurdos superei a fraqueza de minha genética
Não que ainda não alimente este ou aquele vício biogeoquímico
Mas ao menos faço-o em direção dum esplendor que esmague todo cálculo e previsão de ação em que me consumi.

E aos poucos
As pequenas verdades que cumulo
As míseras pétrias garantias que me permito
Formam uma rede de plasma e fósforo
Em que como tarântula perambulo em busca de insetos pro jantar
E aqui e ali me deparo com canções inescapáveis
Com valsas indescritíveis
Com musas e amigos inevitáveis
Aqui e ali me descubro algo feliz em minha pequenez
Feliz como deve ser feliz a borboleta em seu vôo sem volta
A hiena em seu torpor carnificeiro
O leão no regalo de seu reinado soberbo.

Quem sabe se te alcanço?
Quem sabe se és leve suficiente pra que o laço desta intimação te carregue às mais nobres venturas do inédito
Às mais inquestionáveis desventuras do coração?
Quem sabe se minha lealdade ajuda-te a arrastares a lagoa dourada de tua comoção ao grande oceano da segunda inocência?

Brinquedos

Que há no homem que não seja brincadeira?
Que há de realmente relevante na estória do humano e em todas mais que não seja brincadeira?

Aos aduladores e inconvenientes
Afianço simplesmente que aquilo que não querem chamar de brinquedo
É no máximo brinquedo de gente grande ou brinquedo de gente amarga.

Não que Sócrates pudesse estar completamente correto
Tanto quanto eu não posso ser inteiramente certeiro
Mas em geral nossa espécie só busca o chamado bem
Não um bem absoluto livre de dissonância ou de refutação
Nem mesmo um bem universal duma tábula rasa de inocência hipócrita
Buscamos nosso próprio bem
Se é que me entendem
Nosso prazer pessoal
O bem que nos cabe
E na maioria dos casos a nós somente
Bem que é o mal de muitos outros bem que é um esquecimento de toda generosidade.

Queremos diversão e perigo
E inventamos brinquedos de acordo
Brincamos de amor e nos ferimos nos perigos dos enlaces femininos
Brincamos de ritmos e cores e saímos de nossos ensaios com dedos e juntas inchados calejados da procissão e da mandinga
Brincamos de elementos e elementar nos queimamos nos afogamos fomos soterrados e soprados pra longe de nosso conforto medíocre.

Me pergunto na explosão do gozo
Como pode ser assim tão bom brincar de viver?

Tudo satisfeito por um instante
O vulcão tranquilo
Por um momento
Retomando o fôlego após a volta na montanha-russa divina.

O que brincava de carrinhos quando infante hoje vende seu espírito pra brincar de carrão
O bebê devidamente exposto ao chocalho hoje brinca de elevar almas alheias pululando em seus pianos
O que brincava de palavrões e piadas sujas hoje tem o riso como ciência o sorriso como sintaxe
A moça que brincava de cuidar da casa hoje brinca do mesmo jeito só que com mais afeto e histeria.

Mas e as guerras?
As batalhas sangrentas?
Que brinquedo é a medicina ou a física quântica?
Isto me perguntarão os que estão ainda carentes da vera imoralidade.

Ah bem as brincadeiras nunca estiveram numa esfera diversa da da competição
E assim por conseguinte também nunca diferiram essencialmente das disputas mortais
O horror e a agonia são os golpes sujos as trapaças inevitáveis aos nascidos em berços funestos.

E enquanto a seriedade do mundo escraviza os desavisados
Vou brincando de inverter os costumes de inventar meus hábitos
Brinco com as trevas e as melancólicas depressões
Não que saia ileso
Que assim brincando não me deixe de sujeitar à tristeza
Mas ao menos eventualmente me percebo brincando uma brincadeira chata
E me rio de mim
E jogo fora o brinquedo
Ou brinco de destruí-lo
E então invento outra aventura adulta em que me deliciar.

Brinco de decifrar os porquês da gente que passa cabisbaixa
Brinco de iluminar os cânticos dos que vivem em seus cristais.

E quando o brinquedo que é minha vida se quebrar
Quero brincar de morrer
E engraçar-me de meu medo e rir-me de minha insignificância.

ESTÓRICO