Gagá

Estou querendo chorar por motivo nenhum
E por esclarecer isso a mim mesmo me veio solícito um nobre sutil sorrizinho.
"A gente chora porquê quer", certa vez bradei inocente.
Mas chega de confundir canto e pranto.

A verdade é que tenho dançado pouco ultimamente
E o tempo me tem passado rápido demais
Eras todas decorridas num par de horas -
Dores incríveis de vassalos desapercebidas
Sonhos absurdos de mensageiras incompreendidos...
Mas sei que tenho de estar mais e mais vigilante
Sei que tenho de prezar pelas minhas mães
Que tenho de respeitar os incompletos que me permitem vislumbrar uma plenitude realizável...

Às vezes sinto falta de um pranto mordaz que me fustigue com violência
E me lembro da minha adolescência
Dos excessos de maionese outrora em minhas veias
Da falta de lucidez em minhas meditações.
Hoje risquei de minha agenda algumas musas
Por julgar que minha presença não lhes seja mui relevante -
Não quero alimentar esperanças confusas.
E de repente a melancolia me pareceu engraçada
Como uma ânsia de orgasmo que se tenta satisfazer com um litro de sorvete de creme
Como um erro que justifique outro erro
Ou uma hesitação que se tenta afirmar a mais perfeita contemplação...

Importa que à meia-noite o hoje vira ontem e o amanhã se torna o infinito presente.

Teimosias

Se meu dia tivesse quarenta e duas horas
Eu seria o espírito dum elefante confinado num pequenino corpo humano.
Levantar-me pra uma caminhada seria como entrar no chuveiro frio numa alvorada invernal.
Mesmo coçar minha perna direita seria um desafio, quase como me é hoje em dia evitar uma masturbação.

Se meu dia tivesse mil horas, eu o arredondaria pra um dia de quarenta e dois dias.
Eu seria como uma borboleta insone
Que depois que sai do casulo passa a vida toda voando
Um imenso dia em que construo minha família, em que assino meu testamento, em que rio de Tudo até me sufocar.
E tentaria mergulhar no límpido azul celeste como os espadartes mergulham na profundeza oceânica -
Quem sabe conseguiria, em meu último inspirar, voar tão alto, que morresse exausto além da Gravidade
E flutuaria inanimado ao vazio cósmico, uma pequenina vida que durou um dia imenso.

Se eu ficasse sabendo que aos quarenta e dois de idade morrerei atropelado
Ia tentar ficar acordado até o dia do meu Juízo, não piscar mais os olhos pra não perder nada do que se passou pra mim.
Meu mundo só existe pra mim, só existe em meu nome, em nome do meu propósito
Isso tudo que me estarrece, que me afaga com estarrecimentos
Que me acalma com implosões de tesão e me sacode de manhã pulsando cristalino o espírito do mundo
Isso tudo que me inclui em infinitos contextos de que nunca poderia me imiscuir nem conscientizar
Isso tudo que me solapa em revoluções morais e revoltas fraternais
Isso tudo que me arremessa em quarenta e duas direções sincronicamente em torno de um mesmo centro inapontável
Isso tudo que é Tudo, vez ou outra, me vem ao encontro como qualquer coisa que amo.

E nesses quandos
Em que amo Tudo pois sou obrigado a isso
Nesses breves soluços de auto-realização
Infinitamente conjuro a mim mesmo resoluções inomináveis
Me faço dissolver na corrente sanguínea de Gaya
Me forço à crença digital
E exclamo a mim mesmo, quase assônico "hei de viver eternamente".

Como borboleta ou elefante,
Como os pardais cantando aos maiores músicos
Ou o Sol presenteando aos grandes surfistas.
Hei de ressuscitar inconfundível dentre as raízes de Yggdrasil
E, então, sabe-se lá... quem sabe morra novamente, como algum aprendizado que me seja oferecido.
Como rubi escarlate, quem sabe eu me fixe rigidamente nalgum subsolo e aguarde quarenta e dois milênios por uma lapidação que me encaminhe à coroa de alguma rainha moura futurista.
Como petróleo, quem sabe eu abasteça motocicletas de dinossauros ultra-inteligentes e conduza alguma alma réptil estressada a algum belo recanto de quartzo, algum oásis transparente em que se purifique.
Ou, como carambola, visite alguma praia perfeita na pança dalguma criança sapeca
Ou, como figo, visite os esgotos japoneses, depois de ser encaixotado, importado, comprado e regurgitado após alguma ceia exagerada.
Quem sabe o pequenino ponto que é o centro do meu cérebro desapareça
E Deus o agarre vagando pelas estrelas, e o conduza a algum centro educacional de fractais perdidos.
E daí eu posso até renascer em algum Éden que nunca degenera
Passear nú Eternidade afora pelo holograma sem peso que é a Vida.

Por enquanto eu ainda recupero o fôlego
Gozei sozinho, não resisti -
E a libido violada, o ego sedento por mais sempre mais, o espírito um tanto pesado
Vou me empurrando virtual à frente
À próxima esticadela estúpida de vértebras
À próxima dormência de tornozelos por escrever um poema todo na mesma posição de pernas cruzadas
Ao próximo imprevisível infinito que certamente há de florescer
Ao seguinte quarenta-e-dois que se me apresente e me faça pensar de novo um pouco sobre o arrependimento do orgasmo solitário.

Paixão

Às vezes penso comigo mesmo que nunca mais serei capaz de escrever mais um verso.
E aquilo acaba sendo um novo verso, primeiro de uma estória supostamente impossível de se contar.

Daí fico querendo escrever sobre tudo de que me arrependeria
Se soubesse que amanhã é o dia em que enfim morro.
Fico querendo falar sobre o mundo do agora como qualquer coisa distante e incompreensível
Como parte de um eu que não tenha futuro longínquo
E assim posso olhar pras coisas como fosse minha última chance
Crio a ilusão de obrigatoriedade de aproximação ao universo
Me pressiono à culpa de estar ainda vivo
E ter em mãos uma vida inteira de escolhas e perturbações.

E então chegar ao fim de um dia de trabalho pode ser algo intenso e mórbido
Encarar a madrugada de repouso pode ser um vacilo, uma hesitação do tirano que quereria reger as nações todas.
A não ser que o dia de trabalho tenha sido mero cumprimento de abnegações espirituais.
É, estou perdido, um tanto enlouquecido, esperto ao frio do culto
Expectante ao truque do idoso
Aspirante à difamação em meio aos bocejadores.

Às vezes os versos são só confissões imprudentes
Não podem ser mais que desabafos únicos e estupidamente sinceros.
Às vezes a ode suprema é um simples agradecimento à chance que a Vida dá de repararmos nela.
Às vezes a superação ulterior de si mesmo é uma inspiração pisciana
Ou uma confusão teimosa em que a vaidade se amarga por afinal pertencer ao tempo
Ou uma insolência inadmissível em que o orgulho se adocica por afinal não constatar-se a si onipotente.

Sei que amo
Que te amo
Que me amo
Sei do amor dos súditos pelo amo
E o amor constrói nossa sabedoria polindo nossa curiosidade com algum diamante axiomático.

Aprendizado

Tanto se faz, tanto se vê
Tudo em nome de uma trilha sonora
Em nome de um tom invisível que colabore com nossas inspirações maquiavélicas
Tudo em nome de qualquer coisa inominável que nos marque como ferro quente.

Vez ou outra somos violentados por nossos pais.
Não raramente
Uma brisa singela
Se arrasta como que numa câmera lenta inconcebível
Em que o tempo espirala sobre si mesmo e os pássaros cantam como se seus hálitos fossem eternos.

E queremos sempre mais
Mais gozo, mais impaciência
Mais pele, mais pêlo, maior apelo, maior zêlo
Quero sempre melhor
Melhor sempre mais
Mais sempre melhor.

E escorro de olhos cerrados por estas teclas tão tão reais
E uma antiga música se me faz tão nova -
Tão nova quanto cada banal amanhecer
Quanto cada teste que é cada banal crepúsculo
E sinto meus dedos prestos como tentáculos agarrando a imensidão da dança
E a precisão do ritmo me arremessa ao âmago de mim
E respiro um pouco mais sábio
Um pouco mais amargo
Um pouco mais soberbo.

Sou um novo eu, o espírito, o corpo e o pensamento
Sempre um novo eu
Eu mais eu melhor eu sempre -
E morre-se porquê há de se morrer
Com ou sem porquê, se há de...

Mas enquanto isso tantos timbres
Sinos bandolins tambores
Enquanto isso beijos tímidos e inescápaveis
Abraços longos e estranhos
Tão longos e tão estranhos que já não se parecem mais com abraços
Ficam no ar como uma coisa longeva e bizarra que só pode acontecer entre dois seres demasiado longevos e bizarros.

Como eu e Deus, cá agora
Eu e o cosmos todo me ouvindo -
Eu falando no tique-taque parasincrônico do teclado digital
Gélido como o coração da Vida
Nú e de roupas
Como um rei sem súditos, rei de mim, ao menos
Como um camelo sedento, amante do infinito do dia, aspirante ao proximo oásis, à próxima miragem.

E luto contra a madrugada
Como luta o orvalho contra a relva
A borboleta contra a negritude do céu sem lua
As incontáveis estrelas contra o contrapeso delas sobre elas mesmas
Meu coração borbulhando magma controverso contra o id ego superego.

E implodo em clímax inesperado
Um zilhão de purpúreos magentas vociferando tranquilos os discursos do medo irracional
A delicadeza do sexo
O relaxamento estimulante da cura indevida
A cadência do tormento alegre de estar-se desperto
A voluptuosidade sonolenta da força inexpugnável
A sapiência terna paterna da taberna
O constranger-se no rodopio do samba
O querer querer-se a si se querendo a si
O querer querer
Querer saber querer.

Domar o leão em pura alienação
Temer à picada da abelha, não pela dor, mas pela morte da pequenina...

No fundo deste texto repousa algo
Que eu quero desenterrar
Que não sei bem o que é, mas que sei estar enterrado clamando ser exumado
Talvez uma expiração que notei e indevidamente desconsiderei
Ou saber que meu sangue tem gosto de romã
Ou que quero ter quarenta e duas esposar e tomar sopa de ventre toda noite no jantar
Ou que fazer música é como escovar os dentes na hora certa
Ou que conquistar o mundo é como tentar desenterrar qualquer coisa que não se sabe bem o que seja...

Que poderiam importar todas as palavras frente ao vital contrair-se em paixão arrebatora?
Que poderia importar toda história de caos, niilismo e pecado frente ao contemplar-se único e natural?
Que poderiam importar todas as irrelevâncias e discrepâncias da modernidade frente ao sopro de John Coltrane?
Quem poderia se importar com qualquer coisa tão estúpida e ridícula quanto a própria infinitude?
Quem leria nestes versos prosados o prazer do que mais prezo?
Quem entenderia a fugidia noção de se estar vivo e adormeceria em alívio?

ESTÓRICO